A desconsideração inversa da personalidade jurídica é a utilização de bens de uma pessoa jurídica para pagar obrigações de seu sócio.
O direito empresarial se fortaleceu com a criação de pessoas jurídicas e, especialmente, com a autonomia patrimonial entre pessoa física e pessoa jurídica. Isso permitiu que as pessoas físicas pudessem destinar parte de seu patrimônio para ser utilizado para empreender.
No entanto, isso também permitiu que algumas pessoas utilizassem das pessoas jurídicas para fraudarem a lei e lesar terceiros.
Com isso, a jurisprudência e doutrina começaram a reconhecer essa fraude e afirmar que não foi para isso que as pessoas jurídicas foram criadas, fazendo com que os bens dos sócios respondessem por dívidas das sociedades – também conhecido como desconsideração da personalidade jurídica.
Com o passar do tempo verificou-se que os sócios também estavam utilizando da pessoa jurídica para esconder patrimônio pessoal, e assim surgiu o que foi afirmado como desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Vamos conhecer um pouco mais sobre o tema? Continue a leitura! 😉
O que é desconsideração inversa da personalidade jurídica?
A desconsideração inversa da personalidade jurídica é o direcionamento de bens que estão em nome de uma pessoa jurídica para quitar débitos de seu sócio, em razão de fraude na propriedade destes bens.
A história da desconsideração inversa da personalidade jurídica é bastante recente. Uma das principais revoluções no mundo dos negócios foi a criação da pessoa jurídica, viabilizando que pessoas físicas pudessem destinar parte de seu patrimônio para ser empreendido, sem que o resto de seu patrimônio respondesse por este empreendimento.
Desta forma, com o risco limitado ao patrimônio disponibilizado para o empreendimento, mais pessoas passaram a empreender gerando mais negócios e riquezas.
Ocorre que algumas pessoas criaram uma forma de fraudar e prejudicar terceiros utilizando a pessoa jurídica, de forma que criou-se a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para atacar os bens dos sócios por dívidas da sociedade.
O conceito de separação patrimonial é bem forte no direito empresarial, justamente porque justifica e viabiliza a exponencialização de criação de investimentos, negócios e riquezas.
No entanto, o que é justo também é forte no direito empresarial e não é justo utilizar a pessoa jurídica para fraudar terceiros. Por isso, a quebra da separação patrimonial entre sociedades e sócios foi criada. E, assim, surge a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Em algumas vezes, percebeu-se também que o próprio sócio esvazia bens de seu patrimônio geral para incluí-los em uma pessoa jurídica. Em razão dessa injustiça, a doutrina e a jurisprudência criaram a Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica.
Com essa evolução jurídica passou-se a buscar bens que estão em pessoas jurídicas para quitar débitos de seus sócios. A principal justificativa desta teoria é justamente a fraude, pois os bens são, na verdade, do sócio e não da sociedade, apesar de nominalmente o bem estar em nome da sociedade.
Vejam que a doutrina, encabeçada por Fábio Ulhoa Coelho, descreve exatamente essa situação, conceituando a Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica da seguinte forma:
A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada.”
Qual a legislação da desconsideração inversa da personalidade jurídica?
A primeira menção a existência da desconsideração inversa da personalidade jurídica na legislação Brasileira foi no Código de Processo Civil de 2015, de forma bastante sucinta com o seguinte texto:
Apenas em 2019 o Código Civil foi alterado para constar o art. 50, §3º falando da possibilidade de se fazer a desconsideração inversa da personalidade jurídica ao apontar o seguinte:
Percebe-se, assim, que as únicas menções existentes na legislação brasileira sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica apontam que o procedimento a ser utilizado para que ela seja realizada deve seguir o mesmo procedimento e analisar os mesmos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica.
Leia também: Novo CPC Comentado: análise detalhada dos art 133 a 137
Quais são os requisitos da desconsideração inversa da personalidade jurídica?
O art. 50 do Código Civil aponta o conceito e requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, ao passo que no seu parágrafo terceiro descreve que os requisitos são os mesmos no caso de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Desta forma, deve-se analisar os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, dispostos no art. 50 do Código Civil, confira:
Veja que, no caso da desconsideração direta, existe um abuso de personalidade jurídica caracterizado por uma de duas situações:
1. Desvio de finalidade;
2. Confusão patrimonial.
Percebe-se, ainda, que a consequência é: os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiada.
Desta forma, os requisitos para a desconsideração inversa da personalidade jurídica continuam as mesmas, ou seja: abuso da personalidade jurídica caracterizada pelo desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial.
O próprio art. 50 do Código Civil explica melhor esses conceitos, confira:
O que muda é a consequência: ao invés de buscar bens dos sócios/administradores para quitar débitos da sociedade, na desconsideração inversa, busca-se bens da sociedade para quitar débitos do sócio.
Mais liberdade no dia a dia
Exemplo de desconsideração inversa da personalidade jurídica:
Gladston Mamede e Eduarda Cotta Mamede fazem a seguinte afirmação:
O planejamento jurídico (patrimonial, societário, e mesmo fiscal) é uma inovação da tecnologia jurídica. É um instrumento valioso na busca da sustentabilidade jurídica. A blindagem patrimonial é um desvirtuamento ilícito (civil, tributário e penal), que deve ser evitado.”
Diante disso, é possível ver que a blindagem patrimonial é ilícita. Algumas pessoas tentam se utilizar dessa blindagem passando todos os seus bens para a propriedade de alguma empresa que possua.
Assim, utilizaria no dia a dia um veículo, o telefone, o imóvel, contas bancárias que estão em nome da pessoa jurídica, esvaziando por completo os bens de sua propriedade, com a finalidade de evitar que suas obrigações como pessoa física sejam quitadas.
Neste caso está caracterizada a confusão patrimonial, bem como a fraude, para evitar o pagamento de suas obrigações e, com isso, resta verificar a viabilidade para o requerimento de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Uma questão que deve ser analisada é: se as quotas/ações da sociedade são do sócio, porque pedir a desconsideração inversa da personalidade jurídica?
O credor possui duas linhas para buscar que seus créditos sejam quitados,
- A própria desconsideração inversa da personalidade jurídica e pedir penhora direta de bens da pessoa jurídica;
- Ou pedir para penhorar os próprios bens do devedor.
Você pode perguntar: mas quais bens, se todos estão na sociedade? As próprias ações/ quotas podem ser penhoradas de forma direta e, consequentemente, fazer a liquidação das quotas/ações e receber diretamente o dinheiro da sociedade.
Jurisprudência sobre desconsideração inversa da personalidade jurídica:
A desconsideração inversa da personalidade jurídica já é utilizada amplamente em tribunais de todo o país, e foi amplamente discutida na Jornada de Direito Civil, promovida pela CJF, sendo lavrados dois enunciados sobre o tema:
Já quanto às decisões de forma direta nos tribunais, podemos citar algumas do Superior Tribunal de Justiça que pode elucidar um pouco o tema discutido:
REsp n. 1.647.362/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/8/2017, DJe de 10/8/2017.
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE. MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXISTÊNCIA. INCIDENTE PROCESSUAL. PROCESSAMENTO. PROVIMENTO.
1. O propósito recursal é determinar se: a) há provas suficientes da sociedade de fato supostamente existente entre os recorridos; e b) existem elementos aptos a ensejar a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos do art. 987 do CC/02.
3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir.
4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.
5. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório.
6. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15.
7. Recurso especial conhecido e provido.
REsp n. 1.982.730/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 21/3/2023, DJe de 23/3/2023.
RECURSO ESPECIAL. EMPRESARIAL E PROCESSUAL CIVIL. PENHORA DE QUOTAS SOCIAIS. CREDORES PARTICULARES DO DEVEDOR TITULAR DE EIRELI. TRANSFORMAÇÃO LEGAL EM SOCIEDADE LIMITADA UNIPESSOAL. POSSIBILIDADE DE PENHORA DA PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA DO SÓCIO DEVEDOR. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA À UNIPESSOALIDADE DA ENTIDADE EMPRESARIAL E À SUBSIDIARIEDADE DA CONSTRIÇÃO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
(…)
3. É possível a penhora, no todo ou em parte, da participação societária do devedor sócio de sociedade limitada unipessoal (independentemente de o capital social estar dividido ou não em quotas) para o adimplemento de seus credores particulares, mediante a liquidação parcial, com a correspondente redução do capital social, ou total da sociedade (arts. 1.026 e 1.031 do CC e 861 a 865 do CPC/2015), desde que mantida a unipessoalidade societária constante do respectivo ato constitutivo e a subsidiariedade dessa espécie de penhora disposta nos arts. 835, IX, e 865 do CPC/2015.
4. A coexistência da penhora de quotas sociais (isto é, da participação societária do sócio da sociedade unipessoal) e da desconsideração inversa da personalidade jurídica afigura-se salutar ao procedimento executivo, pois apresenta meios alternativos – atendidos os respectivos pressupostos legais – de satisfação do direito do credor, que é o fim precípuo da execução positivado no art. 797 do CPC/2015.
5. Recurso especial desprovido.
Conclusão:
Diante de todo o exposto, percebe-se que caso uma pessoa esvazie seu patrimônio direcionando-o para uma pessoa jurídica de sua propriedade, mas continue utilizando como se seu fosse, fica caracterizada uma simulação.
Quando essa simulação ocorre, é possível atacar diretamente os bens da pessoa jurídica para quitar débitos de seu sócio, priorizando o princípio da boa-fé amplamente destacado no direito privado.
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Conheça as referências deste artigo
Mamede, Gladston, Mamede Eduarda Cotta. Blindagem Patrimonial e planejamento jurídico. São Paulo: Atlas. 2011, pg. 6
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. v. 2. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 47
Advogado (OAB 95264/MG). Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC (2003). Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Constitucional pelo Instituto Metodista Izabela Hendrix (2005) e em Direito, Estado e Constituição pela Jurplac (2008). Mestre em Direito Privado pela Universidade FUMEC (2018),...
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Gostei muito do conteúdo de Vocês. Por favor gosto e vou crescer com a aurum
Que notícia boa, Edson!
Fico muito feliz que estamos te auxiliando!
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