A usucapião rural é um importante instrumento de regularização fundiária que permite ao pequeno produtor adquirir a propriedade de um imóvel pelo uso produtivo e contínuo da terra.
A usucapião é um dos institutos mais tradicionais do Direito Civil brasileiro e tem suas raízes que remetem ao milenar Direito Romano. Trata-se de um modo originário de aquisição da propriedade, fundado na posse prolongada e ininterrupta de um bem, somada ao cumprimento de requisitos legais especificados na legislação.
No contexto rural, a usucapião ganha contornos sociais e econômicos relevantes, por possuir papel na regularização fundiária e na promoção da função social da propriedade.
Basicamente, a usucapião rural se torna um mecanismo de garantir a propriedade de um imóvel rural, dentro de suas limitações legais, para aquele que dá destinação e cumpre a função social do bem.
Em nosso país de dimensões continentais e forte vocação agrícola, o instituto da usucapião rural é mecanismo para garantir o direito à terra e a efetividade da posse produtiva.
Neste artigo, iremos explorar e explicar os requisitos da usucapião rural, prazos e procedimentos, destacando sua importância e relevância. Continue a leitura! 😉
O que é a usucapião rural?
A usucapião rural, também chamada de usucapião especial rural, é uma modalidade de aquisição da propriedade prevista no artigo 191 da Constituição Federal e regulamentada no artigo 1.239 do Código Civil.
Constituição Federal. Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.
Código Civil. Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Ela permite que o possuidor adquira a propriedade de um imóvel rural com até 50 hectares, desde que comprove o exercício da posse mansa e pacífica, sem oposição, por cinco anos ininterruptos, utilizando a terra para sua moradia e para o sustento próprio e de sua família.
Exemplo de usucapião rural:
Para compreender melhor, deixe-me descrever um cenário hipotético que nos auxiliará na compreensão.
Carlos e Regina, agricultores de origem simples, há mais de oito anos vivem em uma pequena propriedade rural de 30 hectares, onde constroem sua casa e cultivam alimentos para consumo próprio e venda local. O terreno estava abandonado e mal-cuidado, sem registro atualizado ou ocupação anterior conhecida.
Durante todos esses anos, Carlos e Regina exerceram a posse de forma contínua, pacífica e com animus domini, ou seja, com a intenção de serem donos. Cuidaram dessa área, pagaram os impostos, realizaram benfeitorias e tiraram dela seu sustento.
Nesse cenário apresentado, eles preenchem os requisitos legais e podem requerer a usucapião especial rural, obtendo o registro da propriedade em seu nome.
Esse exemplo mostra justamente o que a legislação quer: reconhecer juridicamente o direito de quem dá destinação social e produtiva à terra, mesmo sem possuir um título formal de propriedade.
Requisitos da Usucapião Rural:
Por mais que já tenhamos tratado superficialmente, é essencial que abordemos os requisitos para a configuração da usucapião rural que estão previstos no art. 191 da Constituição Federal e no art. 1.239 do Código Civil. Sendo eles:
Área de até 50 hectares:
O imóvel objeto da usucapião não pode ultrapassar 50 hectares. Trata-se de um limite objetivo fixado pelo legislador, destinado a garantir que o instituto beneficie pequenos produtores e não grandes latifundiários.
Inclusive, o enunciado 313 do Conselho de Justiça Federal na IV Jornada de Direito Civil afirma que:
quando a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir.”
Posse mansa e pacífica, sem oposição:
O possuidor deve exercer a posse de forma contínua e ininterrupta, sem contestação ou litígio. Caso haja disputa judicial ou oposição formal do proprietário, o requisito é rompido.
Prazo mínimo de 5 anos:
É necessário comprovar o exercício da posse pelo período de cinco anos consecutivos, contados de forma ininterrupta e inquestionada.
Moradia habitual:
O possuidor e sua família devem residir no imóvel, demonstrando que o local é utilizado como moradia principal.
Trabalho e sustento próprio e da família:
A terra deve ser utilizada para fins produtivos, ou seja, para o trabalho pessoal e sustento da família, comprovando o atendimento à função social da propriedade.
Ausência de outro imóvel:
O beneficiário não pode ser proprietário de outro imóvel rural ou urbano. Esse requisito reforça o caráter social da modalidade, direcionada àqueles que ainda não possuem propriedade formal.
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. BENS IMÓVEIS. AÇÃO DE USUCAPIÃO RURAL. USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. FATOS CONSTITUTIVOS. PROVA. Na ação de usucapião especial rural incumbe à parte autora provar os fatos constitutivos do direito alegado, ou seja, não ser proprietário de imóvel rural ou urbano, possuir como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia. Aplicação do art. 191 da CF e art. 373, I, do CPC/15. Circunstância dos autos em que ausente prova dos requisitos à declaração de domínio; e se impõe manter a sentença de improcedência. RECURSO DESPROVIDO. (TJ-RS – AC: 70083639658 RS, Relator.: João Moreno Pomar, Data de Julgamento: 27/02/2020, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 05/03/2020)
Cumpridos esses requisitos, o possuidor adquire o direito de requerer a declaração de propriedade por usucapião rural.
Qual a posse e o prazo para a usucapião rural?
A posse exigida deve ser mansa, pacífica, contínua e com animus domini — isto é, com a intenção de agir como verdadeiro dono do imóvel.
A mera ocupação precária, o comodato ou a posse por mera tolerância não configuram usucapião. Isso significa que caso o terreno tenha sido arrendado e o arrendatário passe a residir no imóvel, não poderá requerer a usucapião.
Nesse mesmo sentido, caso o caseiro de um terreno rural passe a produzir naquele terreno e levante renda com sua produção, também não poderá requerer a usucapião, pois trata-se de mera tolerância do proprietário.
O elemento subjetivo (intenção de dono) é indispensável e deve ser evidenciado por atos concretos, como o cultivo da terra, o pagamento de tributos, a realização de benfeitorias e a manutenção do local como residência habitual.
Quanto ao prazo, o art. 1.239 do Código Civil estabelece que a posse deve perdurar por cinco anos ininterruptos. Esse é um dos prazos mais curtos entre as modalidades de usucapião, justamente por seu caráter social, igualando-se apenas ao prazo da usucapião especial urbana.
Importante lembrar que o prazo não se interrompe com a morte do possuidor, podendo ser somado ao tempo de posse do herdeiro ou sucessor, conforme dispõe o art. 1.243 do Código Civil.
Qual a diferença entre usucapião rural e urbana?
Embora semelhantes em essência, a usucapião rural e a usucapião urbana têm finalidades e requisitos distintos, refletindo as diferentes realidades do campo e da cidade.
Usucapião Rural | Usucapião Urbana | |
Fundamento legal | Art. 191 da CF e art. 1.239 do CC | Art. 183 da CF e art. 1.240 do CC |
Tamanho | Até 50 hectares | Até 250 m² |
Tempo da posse | 5 anos | 5 anos |
Finalidade | Moradia e trabalho produtivo rural | Moradia própria |
Proibição de outro imóvel | Sim | Sim |
Função Social | Produção e subsistência familiar | Habitação e moradia digna |
Em resumo, a usucapião rural tem foco na produção e subsistência familiar, enquanto a usucapião urbana em trazer moradia e combater o déficit habitacional nas cidades.
Ambas, contudo, trazem a mesma lógica de promover a função social da propriedade e garantir segurança jurídica a quem cumpre com ela.
Como solicitar a usucapião rural?
A usucapião rural pode ser requerida pela via judicial ou extrajudicial, conforme a conveniência do caso concreto e a regularidade documental existente, contudo, em ambos os casos é necessário que o pedido seja realizado por advogado.
Na via judicial a ação de usucapião rural deverá ser proposta perante o juízo cível da comarca onde o imóvel está situado, com fundamento nos artigos 1.238 a 1.244 do Código Civil e artigos 319 e seguintes do Código de Processo Civil.
Nessa via, o juiz analisará as provas apresentadas e determinará a citação dos confinantes, do proprietário registral e de eventuais interessados, além da intimação do Ministério Público, Estado, Município e União.
Após a instrução processual e eventual perícia (para delimitação da área quando necessário e não instruída a inicial com planta e memorial descritivo), sendo comprovados os requisitos legais, será proferida sentença declaratória de propriedade, que servirá de título hábil para registro no cartório de imóveis.
A usucapião extrajudicial foi introduzida pelo artigo 216-A da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), permitindo que o procedimento seja feito diretamente no cartório de registro de imóveis, com assistência obrigatória de advogado.
Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: […]
Essa modalidade é mais célere, porém exige plena concordância de todos os confrontantes e do proprietário registral.
O requerimento é instruído com documentos e planta assinada pelos confinantes e deve ser analisado pelo oficial registrador, que poderá solicitar diligências, promover notificações e, se não houver impugnação, registrar o imóvel em nome do requerente.
Caso haja discordância de qualquer interessado, o procedimento é arquivado e as partes deverão ingressar com a usucapião pela via judicial para resolução do conflito e da contestação da posse.
Documentos e provas necessários:
Tanto na via judicial quanto na extrajudicial, o sucesso do pedido de usucapião rural depende da quantidade e qualidade das provas apresentadas. Veja essa decisão que negou provimento ao pedido por falta de provas:
EMENTA: APELAÇÃO. AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL. REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO . Para o reconhecimento da usucapião especial rural, exige-se a comprovação de posse mansa, pacífica e ininterrupta por pelo menos cinco anos, sobre imóvel rural de até 50 hectares, além de sua utilização como moradia e exploração produtiva. Faltando qualquer desses requisitos, a improcedência do pedido é medida que se impõe. (TJ-MG – AC: 00390510420128130699 Ubá, Relator.: Des.(a) Cláudia Maia, Data de Julgamento: 13/09/2018, 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 21/09/2018)
Nesse sentido, esses são os principais documentos e meios de prova, lembrando que sempre é necessário a análise de tais documentos por um advogado para verificar a possibilidade ou não do pedido:
- Documentos pessoais do requerente: RG, CPF, certidão de casamento ou nascimento;
- Comprovante de residência: para demonstrar que o imóvel é utilizado como moradia habitual;
- Certidões de matrícula e negativa de propriedade;
- Planta e memorial descritivo georreferenciado: elaborados por profissional habilitado (engenheiro ou agrimensor), com indicação dos confrontantes;
- Certidão do INCRA: com o número do CCIR e informações cadastrais do imóvel;
- Comprovantes de exploração econômica da terra: notas fiscais de venda de produtos, recibos de insumos, fotos das lavouras, criação de animais ou benfeitorias;
- Testemunhas que possam atestar o tempo de posse, o uso produtivo e a ausência de conflito;
- Certidões negativas de ações possessórias demonstrando inexistência de litígio sobre o imóvel.
A consistência documental é o que diferencia um pedido bem-sucedido de um pedido indeferido. O ideal é que o processo seja conduzido com planejamento jurídico e técnico, envolvendo advogado e profissional de agrimensura desde o início.
Conclusão:
A usucapião rural é, portanto, uma forma de aquisição da propriedade originária e um mecanismo de justiça social que reconhece o direito de quem transforma a terra em fonte de sustento, moradia e dignidade.
Ao permitir que pequenos produtores e famílias rurais regularizem sua posse, o instituto cumpre papel essencial na efetivação da função social da propriedade, na redução dos conflitos fundiários e na promoção do desenvolvimento econômico sustentável no campo.
Ainda que o procedimento possa parecer complexo à primeira vista, com a orientação adequada e documentação completa, a regularização é plenamente viável, seja pela via judicial ou extrajudicial.
Por isso, é fundamental que o interessado busque o acompanhamento de um advogado especializado em Direito Imobiliário capaz de conduzir todas as etapas com segurança e garantir que a posse legítima se converta, enfim, em propriedade reconhecida por lei.
Mais conhecimento para você
- Usucapião: conheça os tipos e seus requisitos
- O que são crimes cibernéticos e suas principais legislações no Brasil
- Esbulho possessório no Direito Civil
- Ação monitória no Novo CPC: o que é e modelo exclusivo
- Entenda o que é a maioridade civil
- Processo administrativo: o que é e principais dúvidas
- Principais aspectos jurídicos da liberdade de expressão
- Direito consuetudinário, a legitimidade dos costumes como fonte jurídica
- Herança Jacente: Desvendando os desafios da sucessão sem titulares
Este conteúdo foi útil pra você? Conta aqui nos comentários 😉
Conheça as referências deste artigo
TJ-RS – AC: 70083639658 RS, Relator.: João Moreno Pomar, Data de Julgamento: 27/02/2020, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 05/03/2020
TJ-MG – AC: 00390510420128130699 Ubá, Relator.: Des.(a) Cláudia Maia, Data de Julgamento: 13/09/2018, 14ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 21/09/2018
Fábio Henrique Santos Vieiro, advogado, sócio-proprietário da Vieiro & Horning Advogados, bacharel em direito pela UNICURITIBA, pós-graduado em Direito Civil e Empresarial pela PUC-PR e especialista em direito imobiliário....
Ler mais
Tenho uma propriedade, titulada car i registrada, moro nela a 7 anos, mas chegou um suposto dono só com um título de terceiros, se prevalecendo do poder abusivo da polícia, chegou com várias viaturas pra mim intimidar i consequentemente me expulsa do meu própria sítio, o que devo fazer?
Excelente trabalho Franco Aguilar. Objetivo, claro, de facil compreensão. Cumprimento-o, e usarei dos ensinamentos valiosos.;
Meu pai vendeu um imóvel rural de 60 hectares, o comprador pagou 30 hectares, meu pai deu o documento deste parte, o restante o comprador deu calote gerando quebra de contrato, isto ocorreu a uns 15 anos, meu pai explora o terreno desde sempre, nem cerca foi feito pois o caloteiro sumiu, na certidão de matricula o terreno atualmente está alienado a um banco, meu pai já tem outros terrenos e não mora nesta gleba, seria possível pedir usucapião ou reintegração de posse?
Olá, Pedro!
A situação que você descreve é bastante complexa e envolve várias nuances jurídicas. É importante que você procure o conselho particular de um advogado especializado em direito imobiliário para obter uma avaliação precisa da situação…
No mais, se o terreno está atualmente alienado a um banco, provavelmente houve algum tipo de transação ou empréstimo em que o terreno foi usado como garantia. Isso pode complicar ainda mais a situação, e novamente, é altamente recomendável que você consulte um advogado para obter uma visão clara de todas as suas opções.
uma dúvida, no caso de o possível usucapiente ter outro imóvel rural em seu nome, não existe alguma excessão quantos aos requisitos para esse pedido?
Olá, Carla!
Existem diferentes tipos de usucapião. Alguns exigem que você não seja dono de nenhum outro imóvel, mas outros não têm essa restrição.
Portanto, mesmo se você tiver outro imóvel rural em seu nome, pode ser possível obter a usucapião de um imóvel, dependendo das circunstâncias. Para entender melhor a sua situação, o melhor é conversar com um advogado particular 😉