O testamento vital é o documento no qual uma pessoa capaz registra antecipadamente a sua vontade quanto aos tratamentos de saúde que gostaria ou não de se submeter em situações de incapacidade permanente.
Dizem que uma das poucas coisas inevitáveis na vida é o seu fim. Entretanto, não é todo mundo que se sente confortável em falar da própria morte.
Embora o assunto seja um tabu, a conscientização sobre a necessidade de se discutir nossos dias finais deve ir além do planejamento sucessório. Sendo ele voltado tão somente à garantia e transferência patrimonial.
De fato, o planejamento sucessório tem se difundido, mas poucas pessoas que resolvem pensar em seu falecimento com olhos para a proteção patrimonial aceitam ir além e planejar seus últimos dias no plano mais íntimo.
Nesse texto abordaremos o pouco conhecido instituto do testamento vital e a sua importância para a garantia da dignidade e autonomia dos pacientes em situações terminais.
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O que é testamento vital?
O testamento vital é uma espécie do gênero “diretrizes antecipadas de vontade”. A outra espécie que figura no mesmo gênero é a procuração para os cuidados da saúde.
No entanto, os institutos são frequentemente tratados como sinônimos de forma equivocada.
Luciana Dadalto (DADALTO, 2022) conceitua o testamento vital como:
um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos a que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade.”
Difere da procuração para os cuidados da saúde, na medida em que nesta o autor delega a outrem a tomada de decisão relativa aos tratamentos de saúde para situações de incapacidade temporária. No testamento vital, é a vontade do próprio paciente que é manifestada e deverá ser respeitada, além de ser eficaz somente no caso de incapacidade irreversível.
Contudo, nada impede que, no testamento vital, o autor nomeie procurador, delegando a este a tomada de decisões em situação de irreversibilidade do paciente incapaz.
O testamento vital tem como fundamentos a autonomia privada e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, cumprindo dois objetivos, conforme destacado por Luciana Dadalto (DADALTO, 2022):
garantir ao paciente que seus desejos serão atendidos no momento de terminalidade da vida”.
proporcionar ao médico um respaldo legal para a tomada de decisões em situações conflitivas”.
Ainda, o testamento vital não pode ser confundido com a procuração para cuidados de saúde. É recomendável que se redija uma única diretriz antecipada de vontade, incluindo as disposições relacionadas ao testamento vital e, também, a nomeação de procurador para cuidados de saúde.
Com isso, o autor ficará seguro para quaisquer casos de incapacidade. Seja permanente, em que se aplicam as disposições do testamento vital, ou temporária, onde vigerá a procuração para os cuidados de saúde.
Como não há formalidade prevista em lei para a elaboração do testamento vital, recomenda-se a lavratura de escritura pública ou de instrumento particular subscrito por duas testemunhas, cuja guarda deverá ser entregue a uma pessoa da confiança do autor.
O que a legislação fala sobre o testamento vital?
Ainda não existe legislação específica sobre o assunto no Brasil. Portanto, a validade do testamento vital está fundada em dispositivos constitucionais, em especial os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF) e da autonomia privada (art. 5º, inciso II, da CF).
Além disso, o testamento vital também está regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, conforme Resolução CFM nº 1995/2019, que “dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes”.
Mesmo na omissão legislativa, o instituto encontra reconhecimento por parte do Poder Judiciário por meio dos enunciados 528, da V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e 37, da I Jornada de Direito da Saúde, do Conselho Nacional de Justiça.
Todavia, já existem projetos de leis que visam regulamentar a prática, como os Projetos de Leis nº 5559/2016 e nº 352/2019, em trâmite na Câmara dos Deputados e o Projeto de Lei do Senado nº 493/2020. Também havia um Projeto de Lei do Senado específico, de nº 149/2018, que ao final da legislatura de 2022 foi arquivado.
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O que a doutrina fala sobre o testamento vital?
Muito embora inexista regulamentação legal do testamento vital no Brasil, o instituto já vem sendo discutido no campo doutrinário, em especial o estrangeiro.
Nessa seara, a doutrina aponta que o testamento vital encontra limites na objeção de consciência do médico, consoante art. 28 do Código de Ética Médica, e no próprio ordenamento jurídico, porquanto não poderá prever disposições contrárias à lei.
Portanto, o testamento vital não poderá prever a eutanásia, por exemplo, na medida em que essa prática é vedada no Brasil. De igual modo, entende-se que o testamento vital não poderá prever tratamentos que sejam contra indicados à patologia do paciente ou que estejam superados pela Medicina.
Como o testamento vital é elaborado enquanto seu autor possui capacidade plena, o tempo decorrido entre a elaboração do documento e a produção de seus efeitos pode representar defasagem nas disposições ali contidas, ante a evolução dos tratamentos médicos.
Nesses casos, entende-se que o médico não estará obrigado a seguir aquelas disposições, conforme artigo 32 do Código de Ética Médica.
Discute-se, ainda, a própria validade das disposições que prevejam a ortotanásia, porquanto possa ser equiparada ao homicídio.
Contudo, a ortotanásia encontra respaldo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, devendo “ser encarada como prática terapêutica, garantidora da dignidade do paciente em estado de terminalidade, de sua autonomia e de seus familiares, e não como conduta criminosa” (DADALTO, 2022).
Como fazer um testamento vital?
Como mencionado, não existe forma regulamentada em lei para a elaboração do testamento vital. No entanto, recomenda-se que seja lavrada escritura pública ou seja elaborado instrumento particular, assinado por duas testemunhas.
A seguir, trarei um modelo de Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade utilizado por um cartório que poderá ser útil ao leitor. Repare que neste modelo, há um ponto polêmico sobre a eutanásia.
No entanto, a previsão se baseia da autonomia prospectiva, ou seja, como o testamento vital produzirá efeitos somente em um futuro incerto, existe a possibilidade de a prática da eutanásia ser legalizada . Nesse caso, o paciente já terá manifestado a sua vontade e seu desejo poderá ser atendido.
Modelo de Escritura Pública de Diretivas Antecipadas de Vontade
ESCRITURA PÚBLICA DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE E OUTRAS DISPOSIÇÕES que faz: ______, na forma abaixo:
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Saibam quantos esta Pública Escritura de Diretivas Antecipadas de Vontade e Outras Disposições virem que ______, nesta Cidade de _____________, Estado ___________, no Serviço Distrital ______________, compareceu como Outorgante Declarante Testador: _______, natural da Cidade de ____, Estado do _____, onde nasceu aos __, filho(a) de ___ e ____, (___AINDA VIVOS??), e como Testemunhas: _____ e ______. Os presentes foram reconhecidos, em sua identidade e capacidade, como os próprios de que trato, em conformidade com o inciso II, do parágrafo 1º, do artigo 215, da Lei 10.406/2002 (Código Civil), face as declarações e identificações a mim apresentadas, em seus originais, do que dou fé.
Em seguida, encontrando-se o Outorgante Declarante Testador em perfeito juízo, claro entendimento e no gozo pleno de suas faculdades mentais, livre de qualquer coação ou constrangimento, pelo que verifiquei, presenciei e me foi confirmado pelas testemunhas e pelo declarante me foi dito o seguinte:
PRIMEIRO – PROCURADOR__: Nomeia e constitui como s_ procurador__ nos termos e limites informados neste ato, QUALIFICAR PROCURADOR, para os fins ao final transcritos.
SEGUNDO – FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS: O declarante informa que através deste ato busca preservar a sua dignidade como previsto pela Constituição Federal, arts. 1º, inciso III, e 5º, inciso III, e ainda segundo as normas do Código de Ética Médica aprovado pela Resolução CFM 1931, de 24 de setembro de 2009 e ainda pela Resolução CFM 1995, de 9 de agosto de 2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
TERCEIRO – OBJETO: Este ato contém a declaração de sua vontade a respeito dos direitos do corpo, da personalidade e da administração de seu patrimônio na eventualidade de moléstia grave ou acidente que o impeça de expressar a sua vontade. Por este instrumento, o declarante deseja orientar os profissionais médicos sobre as suas escolhas relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, bem como, para as situações clínicas irreversíveis e terminais, determinar ao médico que evite a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propicie ao declarante todos os cuidados paliativos apropriados, evitando a dor e o sofrimento físico, moral e espiritual (Código de Ética Médica, Dos Princípios Fundamentais, incisos XXI e XXII).
QUARTO – AUTORIZAÇÃO E CONSENTIMENTO: O declarante autoriza e consente aos médicos que, segundo os ditames deste instrumento e respeitados os limites impostos, promovam todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos necessários ao seu tratamento.
QUINTO – Caso sofra algum acidente ou moléstia grave que impeça o declarante de expressar sua vontade a respeito do tratamento e de providências médicas ou legais atinentes à sua saúde e vida, como por exemplo, ficar em estado de coma, e sendo declarado por junta médica o quadro irreversível de melhora ou que resulte em sequelas, e ainda, esgotadas todas as possibilidades de vida sem a ajuda de aparelhos, o declarante deseja e autoriza sejam desligados os equipamentos que o mantém vivo, mantendo (ou inclusive) apenas a nutrição e hidratação artificial (Código de Ética Médica, art. 41, parágrafo único).
5.1 – Gravidez: Se porventura for diagnosticada gravidez, todos os procedimentos devem ser tomados para salvar o feto. Após o nascimento ou perda do feto, as diretrizes anteriores devem ser aplicadas.
5.2 – O declarante autoriza/não autoriza a utilização de seu material genético para tratamento de seus familiares.
5.3 – O declarante autoriza/não autoriza a utilização de seu sêmen, já depositado em banco próprio, para fecundação com óvulo de sua esposa, podendo a gestação ser feita por outra pessoa, desde que familiar, até o prazo de dois anos.
SEXTO – DIAGNÓSTICO MÉDICO: O diagnóstico médico deverá obedecer aos mesmos critérios fixados na Lei 9.434/97, art. 3º, ou seja, deverá ser precedido da conclusão de morte encefálica constatada e atestada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante.
SÉTIMO – TRATAMENTOS MÉDICOS E OPÇÃO PELA VIDA E MORTE SEM SOFRIMENTO E COM DIGNIDADE: O declarante entende que a sua vida termina quando, face a um diagnóstico médico seguro, não terá mais a possibilidade de se manifestar. Viver em estado de saúde com moléstia irreversível, sem a perspectiva de cura e com dor ou dependente de aparelhos ou no denominado “estado vegetativo” significaria, para ele, a negação de sua vida, de sua dignidade, de sua honra, da imagem que deseja ter em vida e na posteridade. O declarante não deseja que: 7.1) a sua vida seja mantida por qualquer aparelho prolongador de vida; 7.2) sejam realizadas cirurgias que prolonguem a sua vida, mas lhe subtraiam a possibilidade de manter uma vida estritamente normal; 7.3) sofra amputação de qualquer de seus membros; 7.4) a sua vida se prolongue graças ao uso de equipamentos como, por exemplo, bolsas de colostomia; 7.5) seja mantido vivo e inconsciente por mais de 6 meses, autorizando a eutanásia, se permitida pelo ordenamento legal ou, o seu transporte para país onde a legislação permita a eutanásia.
OITAVO – MANDATO: Se o declarante estiver impossibilitado de manifestar a sua vontade, elege ____________ (NOME) para decidir tudo o que seja relativo ao seu tratamento médico, às disposições relativas de sua saúde e vida. Este mandatário deverá agir nos estritos termos deste ato, ou quando haja omissão, segundo os seus próprios critérios, podendo autorizar o desligamento de aparelhos ou a suspensão e interrupção de tratamentos degradantes ou inúteis, o que será apurado segundo decisão de seu mandatário. Este mandato deve sobrepor-se ou, mesmo, excluir o rol previsto no Código Civil, art. 12, parágrafo único, quando colidentes. 8.1 – Representação e poderes em face de médicos, clínicas, hospitais e necrotério: O declarante outorga poderes para __________ para, quando de seu falecimento, obter junto a qualquer médico, clínica ou hospital a integralidade de seu prontuário médico, solicitar cópias de documentos ou outras informações sobre o seu tratamento de saúde e as causas da morte, em conformidade com o Código de Ética Médica vigente, art. 102, e com o Parecer CFM nº 6/10 e eventuais alterações posteriores. Este representante tem poderes também para agir visando a autorizar necropsia ou autopsia, ou vedá-las, autorizar o transporte de seus restos mortais e liberar o corpo de hospitais ou necrotérios para os funerais. 8.2 – Autorização de acesso: O declarante autoriza __ senhor___ ________ a realizar todos os atos necessários para adentrarem na residência do declarante, inclusive com arrombamento de portas e outras aberturas, quando, sob exclusivo critério deste representante, entenda que seja necessária tal providência em defesa de sua saúde, integridade física ou qualquer outro direito de sua personalidade. 8.3 – Condição de validade – Este mandato e ou nomeação de curador tem como termo inicial a mudança de estado que inabilite o declarante a exercer seus direitos de personalidade ou quaisquer atos da vida, condição que marca o seu início, bastando para tal declaração por atestado médico responsável com reconhecimento de firma. Assim, não se confunda este termo inicial com o termo final previsto no Código Civil, art. 682, inc. III. O declarante declara que este mandato cessará quando houver uma das seguintes condições: a) morte; b) interdição legal; c) retorno do declarante ao pleno discernimento para os atos da vida.
NONO – DOAÇÃO DE ÓRGÃOS: Deseja/não deseja e autoriza/desautoriza que todos os seus órgãos que possam ser aproveitados em outras pessoas sejam doados.
DÉCIMO – EXÉQUIAS: Determina que o corpo seja _____ após a sua morte.
10.1 – As suas cinzas deverão ser __ (colocadas no jazigo da família ou junto a seus avós, pais ou parentes, ou, ainda, em algum local significativo para a família, escolhido por seus pais ou, na falta destes, por seu marido), na ocasião de sua morte.
10.2 – O declarante solicita que a sua vontade seja cumprida com o mais absoluto rigor, sem qualquer possibilidade de _____ (sepultamento) do seu corpo, qualquer que seja o motivo que venha a ser alegado, ficando ___, se já mortas aos filhos destas, reservados todos os direitos de escolha da casa crematória.
DÉCIMO PRIMEIRO – DECLARAÇÕES FINAIS – Estas disposições devem prevalecer sobre quaisquer outras decisões de seus familiares, ainda que segundo eles decorram de manifestações suas, e cumprida fielmente como exposto, em todas as suas disposições, por mais nobres que sejam os sentimentos contrários das pessoas e mesmo que sobrevenham dificuldades de qualquer natureza. Pelo Outorgante Declarante Testador me foi dito mais, que ratificará em Juízo, se necessário for, o que se declarou. Por fim, declara a outorgante declarante que foi orientada por este Serviço Distrital que a validade da cláusula de mandato pode ser questionada, conforme artigo 682, II e III do Código Civil, que assim estabelece: “Art. Cessa o mandato: II – pela morte ou interdição de uma das partes; III – pela mudança de estado que inabilite o mandante a conferir os poderes, ou o mandatário para os exercer”, sendo que reitera seu desejo e intenção de que a cláusula de mandato neste ato estabelecida seja válida e eficaz, mesmo ocorrendo sua interdição ou mudança de estado que a inabilite a conferir os poderes. A parte outorgante declarante responsabiliza-se, civil e criminalmente, pela veracidade das informações e declarações prestadas no presente instrumento.
Conclusão
O testamento vital representa um importante instrumento para a garantia da dignidade do ser humano em estado terminal. Além disso, se mostra como uma forma de preservar os familiares do paciente da tomada de decisões muito difíceis, envolvendo a vida do ente querido.
Aos poucos, o tabu que permeia o tema está sendo superado e, a partir da regulamentação do instituto, atualmente em discussão no Congresso Nacional, entende-se que o testamento vital será cada vez mais difundido e utilizado.
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Conheça as referências deste artigo
DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6.ed. Indaiatuba: Foco, 2022.
Advogado (OAB/PR 52.439). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Sócio fundador da Tisi Advocacia, em Curitiba-PR, com atuação em Direito Empresarial, Direito Civil, Propriedade Intelectual e Direito Desportivo....
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