O Direito à Saúde hoje é considerado um direito humano fundamental, que vai além da ausência de doenças, englobando o bem-estar físico, mental e social. Inclui o acesso universal a serviços de saúde de qualidade, assim como condições de vida saudáveis, como nutrição e moradia adequadas. Implica a responsabilidade dos governos em assegurar a disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos serviços de saúde, além de promover condições sociais essenciais.
Este texto propõe uma análise introdutória sobre o Direito à Saúde, vital para o bem-estar humano e um pilar crucial de políticas públicas. A análise começa com uma exploração do conceito de saúde em um contexto histórico, seguida de uma discussão sobre o direito à saúde, com enfoque especial em sua interpretação e efetivação no Brasil.
Prosseguindo, o texto desdobra a estrutura do acesso à saúde no Brasil garantido pela Constituição da República, em três segmentos principais: Saúde Pública, Saúde Complementar e Saúde Suplementar. Antes de apresentar as conclusões, explora as principais razões para o fenômeno crescente da judicialização do Direito à Saúde no Brasil, um tópico complexo e de significativa relevância.
Nas conclusões, o texto convida à reflexão sobre as implicações e impactos do Direito à Saúde no cenário brasileiro. Aborda a importância deste direito para o desenvolvimento econômico e social do país, e destaca alguns dos desafios e as tensões existentes entre a legislação ideal e a realidade prática do acesso à saúde.
Destinado a profissionais da área, estudantes e demais interessados no tema, a proposta é oferecer uma visão introdutória e abrangente sobre um dos direitos fundamentais mais importantes da sociedade moderna.
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O que é o direito à saúde?
A conceituação de saúde evoluiu significativamente ao longo da história. Hipócrates, na Grécia Antiga, já observava a influência do ambiente e do estilo de vida na saúde. No século XVI, Paracelso destacou a importância dos fenômenos naturais e biológicos na compreensão da saúde humana.
No século XIX, Friedrich Engels enfatizou o impacto do ambiente de trabalho e das condições de vida na saúde dos trabalhadores industriais.
Paralelamente, a visão de saúde como a ausência de doença ganhou força, influenciada por Descartes no século XVII e reforçada no século XIX com o avanço da medicina bacteriológica por Pasteur e Koch, focando na etiologia específica das doenças.
O debate entre essas correntes – saúde como bem-estar e saúde como ausência de doença – foi intenso durante a Revolução Industrial. As descobertas médicas apoiavam a concepção de saúde como livre de doenças, enquanto as condições sociais apontavam para uma visão mais ampla, envolvendo fatores ambientais e sociais.
A conclusão veio com a formação da Organização Mundial da Saúde (OMS) após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, definindo a saúde em seu sentido mais amplo:
Um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.
Embora criticada por ser utópica e não operacional, a definição representa um consenso que incorpora tanto as influências ambientais e sociais quanto a ausência de doença.
Além disso, o 3º parágrafo preambular da Constituição da OMS, reconhece que:
O gozo do melhor estado de saúde possível de atingir é um dos direitos fundamentais de cada ser humano…”.
Apontar a saúde como um direito como fundamental é essencial para sua eficácia e implica diretamente na natureza deste direito, como um direito de todos e dever do Estado.
Tal entendimento impulsionou a integração desse direito em diversos tratados internacionais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988.
Estes documentos destacam a saúde como uma condição indispensável para a dignidade humana, intrinsecamente ligada a fatores socioambientais e econômicos.
Hoje, portanto, o direito à saúde impõe aos governos a responsabilidade de desenvolver e implementar políticas eficazes para a prevenção, tratamento e controle de doenças, bem como a criação de infraestrutura adequada para assegurar o acesso universal aos serviços de saúde.
Essa responsabilidade engloba a promoção de condições de vida saudáveis e a integração com outros direitos humanos fundamentais, como educação e trabalho.
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Como funciona o direito à saúde no Brasil?
O Brasil, no contexto internacional, é parte integrante do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, adotado na XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) em 1966, e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais conhecido como “Protocolo de São Salvador”, concluído em 1988.
Internamente, este compromisso é reforçado pela Constituição Federal de 1988, que estabelece o direito à saúde como um dos direitos e garantias fundamentais. Este direito está intrinsecamente ligado ao direito à vida (art. 5º) e é categorizado como um direito social (art. 6º).
O art. 196 da CF consagra o direito à saúde para todos, incluindo brasileiros e estrangeiros, garantindo acesso universal e igualitário a serviços de saúde para promoção, proteção e recuperação. Além disso, instrui o Estado a formular políticas sociais e econômicas visando à redução do risco de doenças e à garantia desse direito.
Ao ratificar esses instrumentos internacionais, o país reconhece e se compromete com o direito à saúde como um direito humano essencial. Esse compromisso é também refletido internamente, na Constituição Federal de 1988, que inscreve o direito à saúde dentro dos direitos e garantias fundamentais.
Portanto, o direito à saúde está diretamente ligado ao direito à vida, como indicado no art. 5º, e é considerado um direito social, conforme estabelecido no art. 6º.
O artigo 196 da Constituição consagra o direito à saúde para todos, brasileiros e estrangeiros, assegurando acesso universal e igualitário a serviços e ações de saúde para promoção, proteção e recuperação. Esta norma também direciona a formulação de políticas sociais e econômicas do Estado, buscando reduzir o risco de doenças e garantir esse direito essencial a todos.
O art. 199, permite que a iniciativa privada participe na assistência à saúde, sendo que o art. 197 autoriza o Estado a delegar a execução de serviços de saúde a entidades privadas, preferencialmente aquelas de natureza filantrópica e sem fins lucrativos. Estas entidades devem atuar de forma complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS), seguindo suas diretrizes, conforme delineado no artigo 199, §1º.
Logo, no Brasil, o sistema de saúde apresenta-se como pluralista, articulado por diferentes vias de acesso:
- Sistema Único de Saúde (SUS), universal e gratuito, financiado por recursos públicos e com atendimento próprio;
- SUS, seguindo as mesmas diretrizes, mas com serviços contratados de instituições privadas lucrativas;
- instituições privadas filantrópicas;
- e instituições privadas lucrativas autônomas, não integradas ao SUS.
Para fins didáticos, podemos dividir a rede de acesso à saúde do Brasil em três segmentos:
- Saúde Pública: Operada pelo setor público sob as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), oferecendo serviços diretamente através de sua estrutura própria.
- Saúde Complementar: Caracterizada pela aquisição de serviços de saúde privados pelo SUS, seja em parceria com entidades sem fins lucrativos, filantrópicas ou lucrativas, mas sempre alinhadas às diretrizes do SUS.
- Saúde Suplementar: Envolve a aquisição de serviços de saúde diretamente de instituições privadas ou por meio de operadoras de planos privados de assistência à saúde, planos de autogestão e administradoras de benefícios. Esta categoria também abrange os provedores privados autônomos, que oferecem serviços de saúde pagos no ato do atendimento.
Adicionalmente, existe um segmento dedicado a servidores públicos (civis e militares) e seus dependentes, que oferece serviços de saúde exclusivos, normalmente em unidades privadas, com um modelo de financiamento híbrido entre recursos públicos e contribuições dos beneficiários.
Saúde Pública
A consagração do direito à saúde na Constituição Federal de 1988 e o impulso fornecido pelo movimento de Reforma Sanitária foram fundamentais para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo.
Este marco representa o comprometimento do Estado brasileiro em assegurar o acesso à saúde como um direito fundamental de todos os cidadãos, refletindo uma postura ativa do governo na promoção e proteção da saúde pública.
O artigo 198, da Constituição estabelece as diretrizes fundamentais do SUS, incluindo a regionalização e hierarquização dos serviços de saúde, a descentralização da gestão, a integralidade de assistência, e a participação comunitária. A regionalização e hierarquização visam a organização dos serviços em diferentes níveis de complexidade e distribuição territorial, enquanto a descentralização otimiza a oferta de serviços.
A competência legislativa sobre saúde é concorrente, conforme estabelecido na Constituição e regulamentada pela Lei n. 8.080/09 (Lei Orgânica da Saúde) e pelo Decreto n. 7.508/2011. Esta competência compartilhada entre os diferentes níveis de governo frequentemente gera conflitos judiciais, especialmente devido à responsabilização solidária dos entes federativos no setor de saúde, conforme a interpretação jurídica majoritária.
O art. 196, inciso III, da CF, promove a participação social na gestão do SUS, que se diferencia do controle social, que se refere à fiscalização das ações estatais pela população. Esta participação é regulamentada pela Lei nº 8.142/1990 e se concretiza por meio de instâncias como a Conferência de Saúde e o Conselho da Saúde, fundamentais para a efetivação das políticas de saúde.
O SUS, conforme garantido pelo artigo 198, inciso II, da Constituição, é público e universal, visando assegurar a integralidade da assistência. Entretanto, enfrenta desafios significativos, como financiamento insuficiente e custos crescentes de tratamentos dado à inovação tecnológica. Tais desafios são agravados por instabilidades político-econômicas e interesses conflitantes.
Para enfrentar esses desafios e fortalecer o SUS, é essencial uma intervenção estatal eficaz, que envolva aprimoramento regulatório contínuo, melhor gestão, aumento do financiamento e estratégias de transparência para equilibrar interesses. Essas medidas visam otimizar o atendimento à saúde em todas as suas dimensões, assegurando a sustentabilidade e eficácia do sistema.
Saúde Complementar
A Constituição Federal, reconhecendo a importância da colaboração entre os setores público e privado na saúde, autoriza o Poder Público a contratar serviços de saúde com entidades privadas. Essas entidades, preferencialmente filantrópicas e sem fins lucrativos, devem atuar de maneira complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS), seguindo suas diretrizes (arts. 197 e 199, § 1º, CF).
Entretanto, a realidade operacional muitas vezes diverge dessas diretrizes. Observa-se que a iniciativa privada, em vez de apenas preencher lacunas transitórias, tem adquirido papéis mais centrais no SUS.
Esse fenômeno se intensificou com a política de redução do Estado implementada nos anos 1990, levando à expansão de modelos de gestão como organizações sociais (OS), organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip) e fundações de apoio integradas ao SUS.
Essa transferência de responsabilidades típicas do Estado para entidades privadas na área de saúde frequentemente resulta em desvios das prioridades estabelecidas pelo SUS. Isso inclui a criação de sistemas de atendimentos duplos (SUS e planos de saúde), em que o primeiro muitas vezes é prejudicado, a eliminação do concurso público como meio de acesso à carreira na saúde pública, desvio de recursos financeiros, falta de transparência, entre outros problemas.
Essas questões apontam para a necessidade de uma revisão crítica e de reformas nas políticas de saúde complementar, visando o realinhamento das práticas de saúde às diretrizes do SUS.
É necessário enfatizar a transparência na gestão, a eficiência na alocação de recursos e a manutenção da qualidade do atendimento, com o objetivo de fortalecer o sistema público de saúde e garantir atendimento equitativo para todos os cidadãos.
Saúde Suplementar
O ordenamento constitucional brasileiro não restringe a prestação de serviços de saúde ao setor público, permitindo assim a coexistência de serviços de saúde privados que operam sob uma lógica mercantil e com objetivos lucrativos.
Estes serviços podem participar do mercado de saúde suplementar, oferecendo planos de assistência à saúde, ou operar por meio de cobranças diretas aos usuários. Contudo, dada a natureza da saúde como direito social, são sujeitos a um rigoroso controle estatal, o que inclui fiscalização e regulamentação.
Os serviços de saúde privados estabelecem relações contratuais e seletivas, forcados na produção e gestão da assistência médico-hospitalar para atender demandas específicas de determinadas clientelas.
O acesso a esses serviços requer remuneração, que pode ocorrer de diferentes formas: pagamentos diretos do usuário ao prestador, contratos com medicina de grupo, cooperativas, seguradoras, ou através de programas de saúde suplementar autogeridos por empregadores.
Essa estrutura cria um mercado dinâmico e diversificado, mas que também apresenta desafios, principalmente no que se refere à garantia de acesso equitativo e à qualidade dos serviços oferecidos.
A regulamentação governamental, nesse contexto, é essencial para assegurar que os padrões de atendimento e as práticas de cobrança estejam em conformidade com os princípios éticos e legais, protegendo os direitos dos consumidores e mantendo a integridade do sistema de saúde como um todo.
A saúde suplementar, portanto, desempenha um papel complementar ao SUS, mas requer uma gestão regulatória atenta para equilibrar os interesses de mercado com os imperativos de saúde pública e os direitos dos cidadãos.
Esta gestão inclui a implementação de políticas que promovam a transparência, a eficiência e a justiça no acesso aos serviços de saúde, garantindo que todos, independentemente de sua escolha pelo setor público ou privado, tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade.
A Judicialização do Direito à Saúde
A incorporação do direito à saúde na Constituição de 1988 como um direito fundamental e a consequente responsabilização do Estado em assegurar esse direito, têm sido fatores determinantes para o aumento das ações judiciais relacionadas à saúde no Brasil.
A garantia constitucional estabeleceu um forte fundamento legal para a judicialização da saúde, processo caracterizado pelo crescente uso do Poder Judiciário por parte dos cidadãos para assegurar acesso a medicamentos e tratamentos não disponibilizados adequadamente pelos sistemas de saúde públicos e privados.
A judicialização da saúde no Brasil reflete as lacunas entre a legislação e a prática efetiva de acesso à saúde, sendo em grande parte uma resposta às falhas do Sistema Único de Saúde (SUS). Tais falhas incluem recursos financeiros insuficientes, gestão ineficaz, acesso desigual aos serviços de saúde e atrasos na disponibilização de medicamentos e tratamentos.
Embora a judicialização possibilite que muitos cidadãos obtenham acesso a tratamentos e medicamentos essenciais, também cria desafios consideráveis na gestão de recursos.
As decisões judiciais frequentemente exigem a provisão de medicamentos de alto custo ou tratamentos não cobertos pelo SUS, o que pode resultar em um desequilíbrio na alocação dos recursos disponíveis e impactar a capacidade do sistema de atender às necessidades gerais da população. Para mitigar os efeitos negativos da judicialização do direito à saúde, é necessária uma abordagem multifacetada.
Isso inclui uma gestão mais eficiente dos recursos do SUS, aumento do financiamento para o setor da saúde, maior transparência e eficácia na distribuição de medicamentos e tratamentos, e um diálogo mais efetivo e construtivo entre os poderes Judiciário e Executivo.
Tais medidas podem ajudar a minimizar as disparidades entre o que é legalmente garantido e praticamente acessível em termos de cuidados de saúde, promovendo um sistema mais justo e equitativo para todos os brasileiros.
Conclusão
Ao concluir nossa análise introdutória sobre o Direito à Saúde, é evidente que este direito, fundamental e multifacetado, desempenha um papel crucial tanto no âmbito individual quanto no âmbito coletivo.
As discussões abordadas neste texto, desde a conceituação global do Direito à Saúde até sua aplicação no Brasil, revelam a complexidade e a interconexão deste direito com diversos aspectos da sociedade, econômicos, políticos e sociais.
Através do delineamento constitucional para existência das estruturas de Saúde Pública, e das áreas complementares e suplementares, observamos como diferentes sistemas e políticas integram para moldar o acesso e a qualidade de saúde do Brasil.
A análise da judicialização do Direito à Saúde no Brasil evidencia um cenário desafiador, em que lacunas na execução das políticas de saúde pública levam a uma crescente dependência do sistema judiciário para garantir esse direito fundamental.
As conclusões enfatizam a necessidade de uma gestão cada vez mais eficaz, de políticas integradas e de um financiamento adequado para enfrentar os desafios do sistema de saúde.
É fundamental que exista uma coordenação entre os diferentes níveis de governo e a sociedade civil para garantir a universalidade, a equidade e a eficiência no acesso à saúde, conforme nossa previsão constitucional, sob pena de que a teoria não atinja a finalidade prática que se busca com a norma.
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Conheça as referências deste artigo
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
KRAMER, Ana Cristina. O Poder Judiciário e as ações na área de saúde. Disponível em: http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm
PEREIRA, Daniel de Macedo Alves. Planos de Saúde e a tutela judicial de direitos: teoria e prática. 3. Ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023.
PIVETTA, Saulo Lindorfer. Direito fundamental à saúde. Regime jurídico, políticas públicas e controle judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
Luiz Paulo Yparraguirre é Mestre pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Pós Graduado em Advocacia Empresarial (PUC) e em Direito Médico e Hospitalar (UCAM). Membro da World Association for Medical Law (WAML). Sócio do...
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