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Direitos autorais: quem é dono das produções criadas por inteligência artificial?

Direitos autorais: quem é dono das produções criadas por inteligência artificial?

20 abr 2023
Artigo atualizado 17 jul 2023
20 abr 2023
ìcone Relógio Artigo atualizado 17 jul 2023
Os Direitos Autorais são espécies de direitos do gênero Propriedade Intelectual. No Brasil, são regulados pela Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98). Atualmente, a tutela dos Direitos Autorais tem passado por desafios decorrentes do advento de ferramentas de inteligência artificial. Estamos preparados para essa revolução?

Nos bancos universitários somos ensinados que o Direito, sob o aspecto normativo, se debruça sobre a realidade (o ser) visando regulá-la com olhos para o futuro (o dever ser). 

Em síntese, na lição de Sergio Pinto Martins: 

O Direito é fruto da convivência humana.” 

Ao longo da história, diversos acontecimentos desafiaram os juristas. Disrupções de maior ou menor dimensão, ocorridas no passado e que nos trouxeram até aqui, questionaram as regulamentações até então inexistentes. 

Agora, vivemos um momento histórico que pode muito bem representar mais uma dessas rupturas. A inteligência artificial, que até então parecia mais saída de livros ou filmes de ficção científica, já é uma realidade e está cada vez mais presente no cotidiano.

Quem nunca utilizou ou, ao menos, ouviu falar de ferramentas de inteligência artificial como ChatGPT, Midjorney, Synthesia entre outras?

O estado é tão surpreendente que até Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo e responsável por inúmeros avanços tecnológicos, assinou, junto com outros milhares de pesquisadores, uma carta pedindo uma pausa no desenvolvimento da inteligência artificial.

A respeito dos reais motivos para tal pedido, a carta afirma que:

A competição de inteligência com os humanos pode representar riscos profundos para a sociedade e a humanidade”.

Confesso que ao ler uma declaração dessas penso imediatamente na Skynet, da série de filmes “O Exterminador do Futuro”. Será esse o nosso destino?

Não temos como saber com certeza, mas o fato é que a realidade, mais uma vez, se apresenta ao Direito e nós, enquanto seus operadores, somos novamente desafiados.

Mas, será que nós temos as respostas? Focando em casos concretos envolvendo inteligência artificial, o que a estrutura normativa já existente tem a nos dizer? 

Especificamente, para analisar na prática, tivemos um caso recente envolvendo a criação de uma música por meio da inteligência artificial (o que por si só já geraria debates jurídicos). Além disso, as vozes utilizadas nessa música foram identificadas como sendo dos cantores mundialmente famosos Drake e The Weeknd. 

Agora, o que essa situação poderia significar para o Direito?

Para ficar claro, a inteligência artificial não reproduziu falas ou trechos de músicas existentes performadas pelos referidos músicos, o que poderia caracterizar, em tese, violação de Direitos Autorais. 

A própria voz dos músicos foi “criada” em uma música original, composta pela ferramenta de inteligência artificial, confundindo ouvintes que realmente acreditaram se tratar de um novo lançamento dos artistas.

É possível afirmar que estamos diante de uma violação de Direitos Autorais nesse caso? Se não há essa violação, que tipo de tutela o Direito reserva para os artistas?

Em busca de respostas, nesse texto falarei um pouco sobre os Direitos Autorais contextualizando-o com a inteligência artificial. Ao final, trarei minhas impressões sobre esse caso emblemático envolvendo os músicos Drake e The Weeknd. 

Quer saber mais? Então vem comigo! 😉 

Leia também: ChatGPT na advocacia: 6 vantagens de uso na rotina jurídica

O que são direitos autorais? 

Direitos Autorais são espécies de direitos que compõem o gênero Propriedade Intelectual, também composto pelos direitos de propriedade industrial.

Carlos Alberto Bittar conceitua o Direito Autoral da seguinte forma:

Em breve noção, pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências.”

Também compreende objeto de tutela dos Direitos Autorais os direitos que lhe são conexos, conforme artigo 1º da Lei de Direitos Autorais. Assim, sendo entendidos os “direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiofusão” (art. 89 da Lei de Direitos Autorais).

Dessa forma, o escritor de um livro original é o detentor do Direito Autoral sobre essa obra. Um cineasta poderá, mediante permissão do autor do livro, adaptar e reproduzir referida obra nos cinemas. O resultado configura o chamado direito conexo, do qual o detentor é o cineasta que criou a película.

De igual maneira, o compositor de uma música é o detentor do Direito Autoral sobre sua criação (da música e/ou da letra). Outro músico poderá adquirir os direitos sobre a letra composta e interpretá-la de maneira original, passando, então, a ser o detentor do direito conexo atinente àquela interpretação específica.

Os Direitos Autorais possuem duplo caráter, compreendendo, além do direito patrimonial sobre a obra, o direito moral, previstos nos artigos 22 a 45 da Lei de Direitos Autorais.

Carlos Alberto Bittar traz:

Com efeito, cada bloco de direitos cumpre funções próprias: os direitos de cunho moral se relacionam à defesa da personalidade do criador, consistindo em verdadeiros óbices a qualquer ação de terceiros com respeito à sua criação; já os direitos de ordem patrimonial se referem à utilização econômica da obra, representando os meios pelos quais o autor dela pode retirar proventos pecuniários.”

Direito patrimonial 

O direito patrimonial é, em suma, aquele que garante ao autor extrair benefício financeiro com a exploração de sua obra. Ele é expressado pelo direito de reprodução que se verifica, por exemplo, quando um músico firma um contrato com uma gravadora, ou quando um escritor firma um contrato com uma editora. 

A gravadora e a editora irão reproduzir aquele conteúdo de forma a monetizá-lo, gerando receita tanto para os autores quanto para si mesmos, a depender do caso concreto.

Quanto ao prazo, os direitos patrimoniais gozam de proteção legal, geralmente, pelo prazo de 70 anos. Porém, o termo inicial da contagem se diferencia para cada caso, conforme artigos específicos da Lei de Direitos Autorais. São eles:

Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.
Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.
Art. 42. Quando a obra literária, artística ou científica realizada em co-autoria for indivisível, o prazo previsto no artigo anterior será contado da morte do último dos co-autores sobreviventes.
Parágrafo único. Acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do co-autor que falecer sem sucessores.
Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação.
Parágrafo único. Aplicar-se-á o disposto no art. 41 e seu parágrafo único, sempre que o autor se der a conhecer antes do termo do prazo previsto no caput deste artigo.
Art. 44. O prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográficas será de setenta anos, a contar de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de sua divulgação.
Art. 96. É de setenta anos o prazo de proteção aos direitos conexos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subseqüente à fixação, para os fonogramas; à transmissão, para as emissões das empresas de radiodifusão; e à execução e representação pública, para os demais casos.

Além disso, a nível internacional, os Direitos Autorais são objeto de proteção, dentre outras, pela Convenção de Berna de 1886, da qual o Brasil é signatário, tendo sido introduzida em nosso ordenamento:

  1. pelo Decreto nº 75.699/1975;
  2. pela Convenção de Roma, internalizada pelo Decreto nº 57.125/65;
  3. o Acordo TRIPS, objeto do Decreto nº 1.355/94;
  4. Além da Convenção que criou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, assinada em Estocolmo em 1967.

Direito moral

Já o direito moral, é aquele que garante aos autores o reconhecimento pela autoria de uma determinada obra. Um aspecto relevante sobre ele é a garantia de preservação da integridade da obra. 

Isso significa que, ainda que o autor tenha cedido o direito patrimonial, havendo utilização que atinja a sua honra ou que modifique ou prejudique a obra, ele permanecerá legitimado a requerer que a reprodução seja suspensa e retirada de circulação. Além disso, também poderá exigir possíveis indenizações decorrentes do ato ilícito.

Dito isso, é importante frisar que os direitos patrimoniais “poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros”, nos termos do artigo 49 da Lei de Direitos Autorais, enquanto os direitos morais não gozam da mesma disponibilidade, conforme inciso I do artigo 49 e artigo 27. 

Sendo assim, os direitos morais são:

  • inalienáveis; 
  • impenhoráveis; 
  • e perpétuos.

Como saber se uma produção tem direitos autorais? 

No Brasil, os Direitos Autorais são regulados pela Lei nº 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais), cujo artigo 7º assim estabelece:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;
II – as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza;
III – as obras dramáticas e dramático-musicais;
IV – as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma;
V – as composições musicais, tenham ou não letra;
VI – as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;
VII – as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;
VIII – as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;
IX – as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;
X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;
XI – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;
XII – os programas de computador;
XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

O atributo essencial de uma criação para gozar da proteção legal é sua originalidade, no sentido de criatividade. Ainda, deve ter sido expressa por qualquer meio ou fixada em qualquer suporte, nos exatos termos do artigo 7º da Lei de Direitos Autorais. 

Registro da obra

Além disso, os Direitos Autorais, ao contrário da Propriedade Industrial, não dependem de registro (art. 18 da Lei 9.610/98). Por isso, não há necessidade de levar a obra criada a um órgão central, visando à sua proteção. 

Ainda assim, aqui no Brasil, é possível registrá-la nos seguintes locais::

  • Biblioteca Nacional;
  • Escola de Música;
  • Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
  • Instituto Nacional do Cinema;
  • Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, de acordo com a afinidade de cada obra (art. 17, da Lei 5.988/73).

O registro, enquanto facultativo, é recomendável para produzir uma prova mais robusta quanto à autoria. Dessa forma, evitando problemas futuros em caso de questionamentos e violações desses direitos.

Portanto, quando nos deparamos com uma música, um livro ou um filme, por exemplo, deve-se partir do pressuposto de que aquela obra está protegida por direitos autorais, ainda que não registrada.

No entanto, não são raras as situações em que uma obra supostamente original é questionada por caracterizar violação a um direito autoral pretérito. Foi o caso da lendária banda britânica Led Zeppelin, que esteve no centro de um processo judicial envolvendo violação de direitos autorais.

A acusação era de que “Stairway to Heaven”, eleita pela Revista Rolling Stone como uma das 100 melhores músicas de todos os tempos, teria copiado a música “Taurus”, da banda americana Spirit. Após anos de processo, a justiça americana considerou que o plágio não existiu.

Nesse particular, importa dizer que, para a configuração do plágio, além da usurpação da obra ou trechos da obra alheia, deve existir o elemento dolo. “Trata-se, o plágio, portanto, de ato consciente, planejado”.

Paulo José da Costa Jr. nos ensina que:

Se a imitação for ‘remota ou fluida’, como diz Nelson Hungria, se o plagiário respinga na obra alheia, sem destacar-lhe a estrutura espiritual ou parte integrante desta, como a abelha que se restringe a sugar na flor, pode merecer censura sob o ponto de vista ético, mas não incorre na sanção penal (nem civil)”.

Portanto, o plágio deve ser analisado com cautela em cada caso concreto. Ainda, a doutrina nos traz alguns elementos objetivos básicos para verificação que serão tratados mais adiante.

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O que pode ser considerado crime de direitos autorais? 

Os Direitos Autorais gozam de proteção nos planos civil, administrativo e penal. No âmbito penal, resta tipificado no artigo 184 e parágrafos do Código Penal, in verbis:

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
§ 1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente.
§ 3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro, direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de lucro direto ou indireto.    

Comercialização não autorizada (pirataria)

Veja que a lei trata com especial atenção os casos conhecidos como “pirataria”, consistente na reprodução ou na disponibilização (venda, aluguel etc.) não autorizadas de obra autoral.

Em 2017, um estudante de medicina respondeu criminalmente pelo crime previsto no artigo 184, § 2º, do Código Penal, pois estaria vendendo materiais de cursinho, incluindo vídeos e materiais didáticos, copiados ilicitamente.

Assim, seriam as figuras mais comuns de violação a direitos autorais:

  • o plágio;
  • a contrafação;
  • e a usurpação de nome ou de pseudônimo.

Plágio

Sobre sua conceituação, Carlos Alberto Bittar nos traz::

Assim, define-se o plágio como imitação servil ou fraudulenta de obra alheia, mesmo quando dissimulada por artifício, que, no entanto, não elide o intuito malicioso. Afasta-se de contexto o aproveitamento denominado remoto ou fluido, ou seja, de pequeno vulto. (…) A configuração do plágio ocorre com a absorção do núcleo da representatividade da obra, ou seja, daquilo que a individualiza e corresponde à emanação do intelecto do autor.”

Além disso, José Carlos Costa Netto enumera cinco aspectos objetivos básicos para aferição do plágio no caso concreto, quais sejam:

  1. O grau de originalidade da obra supostamente plagiada;
  2. A anterioridade de sua criação (e publicação) em relação à obra supostamente plagiária;
  3. O conhecimento efetivo, ou, ao menos, o grau de possibilidade de o autor supostamente plagiário ter tido conhecimento da obra usurpada, anteriormente à criação da sua obra;
  4. As vantagens – econômicas ou de prestígio intelectual ou artístico – que o plagiário estaria obtendo com a usurpação; e
  5. O grau de identidade ou semelhança (em relação aos elementos criativos originais) entre as duas obras.

Contrafação e usurpação

José Carlos Costa ainda traz o conceito de contrafação:

Tem-se, outrossim, por contrafação, a publicação ou reprodução abusivas de obra alheia. O pressuposto é o da falta de consentimento do autor, não importando a forma extrínseca (a modificação de formato em livro), o destino, ou a finalidade da ação violadora.”

E, por último, Bittar afirma que a usurpação de nome ou de pseudônimo: 

se consubstancia na atribuição de obra estranha a outrem, para indevido proveito decorrente de sua condição, geralmente de prestígio (atentado contra a pessoa do titular)”.

Leia também: Isenção fiscal: entenda o anúncio do Governo Federal sobre produtos importados

Quem é o dono das produções feitas por uma Inteligência Artificial? 

Dito tudo isso, chegamos à pergunta de milhões: quem é o detentor dos direitos autorais sobre as produções criadas por Inteligência Artificial?

Como visto, um requisito essencial para uma obra ser protegida por direitos autorais é a sua originalidade. Outro requisito propositalmente omitido até agora – ou melhor, não enfatizado – é aquele descrito nos artigos 7º e 11 da Lei de Direitos Autorais. 

Vejamos esses dispositivos legais:

Art. 7º. São obras intelectuais protegidas as criações de espírito…
Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.

Portanto, a lei atribui como essencial a influência humana na criação. É o chamado antropocentrismo dos direitos autorais.

Diante disso, intensos debates têm sido realizados na seara jurídica a respeito da titularidade dos direitos sobre obras criadas por Inteligência Artificial, inexistindo consenso.

Primeira teoria: Não há proteção dos direitos autorais

Uma corrente afirma que, considerando a necessária influência humana na criação, as obras criadas exclusivamente por mecanismos de Inteligência Artificial, ou seja, “artes generativas”, não gozariam da proteção dos direitos autorais. Assim, inexistindo titular, as obras seriam de domínio público.

É o que afirma Luca Schirru, nos seguintes termos:

A legislação em vigor não seria adequada para lidar com a apropriação dos produtos da IA não apenas pelo seu antropocentrismo no que concerne à criação, mas também pelo fato de que não considera algumas peculiaridades inerentes aos sistemas de IA e a sua aplicação para o desenvolvimento de produtos que, caso desenvolvidos por seres humanos, fariam jus à proteção autoral. Sob a legislação vigente, os produtos da IA, cujo papel dessa tecnologia no resultado final tenha sido determinante e a interferência humana diminuta, a solução adequada seria considerar que tais produtos estariam em domínio público.”

Porém, essa posição visa à obra enquanto produto final da criação. Do outro lado existe corrente que não foca no produto, mas no processo. 

Segunda teoria: Há proteção dos direitos autorais

Aqui, é admitido que, diante da existência do elemento humano interagindo com a máquina no processo criativo, por exemplo nos casos de “artes interativas”, existiria o direito autoral sobre o resultado obtido.

No âmbito desta corrente, ainda há o debate a respeito de quem seria o titular do direito: o programador da ferramenta de inteligência artificial (e aqui pode existir uma multiplicidade de agentes) ou usuário da ferramenta, que dá os comandos que geram os resultados criados pela ferramenta, ou ambos?

A crítica a essa corrente ficaria por conta da exclusão prevista no artigo 8º, I, da Lei de Direitos Autorais, que disciplina não serem objeto da proteção:

As ideias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos matemáticos como tais”.

De qualquer maneira, já temos precedentes reconhecendo a proteção sobre obra criada por Inteligência Artificial, conforme pontos trazidos por essa última corrente.

Foi o que ocorreu na China, onde a empresa Tencent, por meio de sua plataforma Dreamwriter, escreveu um artigo cuja autoria foi reconhecida pelo tribunal local (Shenzhen Tencent v. Shangai Yingxun). 

Em resumo, o argumento central pelo reconhecimento do direito autoral foi justamente a participação humana na alimentação e instrução da ferramenta.

No fim das contas, o debate quanto à incidência de direitos autorais sobre obras criadas por Inteligência Artificial certamente continuará evoluindo. Como dito, o Direito está sendo provocado novamente a dar uma roupagem jurídica a um novo fenômeno ou, quem sabe, fazer ajustes à roupagem já existente.

É certo que, enquanto juristas debatem, a Inteligência Artificial não para de evoluir e, desta vez, tivemos um caso muito interessante. Vamos conferir?

Entenda o caso entre Drake e The Weeknd

Recentemente, viralizou na Internet uma música criada por Inteligência Artificial simulando as vozes dos músicos Drake e The Weeknd. A música “Heart On My Sleeve” em poucos dias teve milhões de visualizações e reproduções em plataformas de streaming, confundindo milhares de fãs ao redor do mundo.

Neste caso, poderíamos afirmar que estamos diante de uma violação de direitos autorais? Para isso, relembremos o que diz a Lei de Direitos Autorais sobre as obras que gozam de proteção:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro…

Ao meu ver, não há algo que tenha sido criado pelos músicos nessa situação. A relação não consentida deles com a música se deu mediante a simulação de suas vozes, e não mediante a reprodução de trechos de trabalhos pretéritos. Isto é, ainda que a ferramenta possivelmente tenha utilizado da discografia para “aprender” e simular.

Veja, sobre isso, o que diz o artigo 90, incisos e § 2º, da Lei de Direitos Autorais::

Art. 90. Tem o artista intérprete ou executante o direito exclusivo de, a título oneroso ou gratuito, autorizar ou proibir:
I – a fixação de suas interpretações ou execuções;
II – a reprodução, a execução pública e a locação das suas interpretações ou execuções fixadas;
III – a radiodifusão das suas interpretações ou execuções, fixadas ou não;
IV – a colocação à disposição do público de suas interpretações ou execuções, de maneira que qualquer pessoa a elas possa ter acesso, no tempo e no lugar que individualmente escolherem;
V – qualquer outra modalidade de utilização de suas interpretações ou execuções.
[…] § 2º A proteção aos artistas intérpretes ou executantes estende-se à reprodução da voz e imagem, quando associadas às suas atuações.

Como o caso seria tratado na legislação brasileira?

Considerando hipoteticamente que o caso tenha ocorrido em nosso país, entendo que o que existe sob o enfoque da lei brasileira é a violação aos direitos da personalidade dos músicos, haja vista a indevida exploração de características ou atributos deles (artigo 5º, V e X, da Constituição Federal e artigo 11 e seguintes do Código Civil).

Ainda, Gustavo Tepedino conceitua os direitos da personalidade como:

conjunto de características e atributos da pessoa humana, considerada como objeto de proteção por parte do ordenamento jurídico”.

Deste modo, apesar do texto legal não fazer expressa referência à “voz” como um elemento da personalidade, essa deve ser objeto de proteção. Nesse sentido, Anderson Schreiber nos traz:

O rol de direitos da personalidade contemplado pelo Código Civil não é taxativo ou fechado. Além dos atributos ali indicados, outros podem se revelar ameaçados na análise de conflitos entre particulares.”

Vejamos precedente do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:

DIREITOS DECORRENTES DO CONTRATO DE TRABALHO – EXPOSIÇÃO DE IMAGEM – USO E VEICULAÇÃO DA VOZ – DANOS MATERIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS. O direito à voz reveste-se de duplo conteúdo, quais sejam, o patrimonial, pois se encontra assentado no princípio segundo o qual a ninguém é lícito enriquecer-se à custa de outrem; bem como o moral, por se revelar como um dos atributos dos direitos da personalidade, resguardado, inclusive, por expressa proteção constitucional e legal (artigo 5º, XXVIII, “a”, da CRFB/88 e artigos 11 e 20 do Código Civil). Nesse passo, a utilização indevida da voz do empregado, sem a autorização deste, para uso em atividade lucrativa patronal (direta ou indireta), dá ensejo ao direito obreiro em perceber indenização por danos materiais, bem como compensação pela ofensa extrapatrimonial de cunho moral (dano “in re ipsa”). (TRT-3 – RO: XXXXX01304803000 XXXXX-13.2013.5.03.0048, Relator: Marcio Ribeiro do Valle, Oitava Turma, Data de Publicação: 25/08/2015)

Além disso, vejo possível violação à honra dos músicos e da artista Selena Gomez, citada na música, já que a letra faz referência a um hipotético caso de traição (artigo 5º, V e X, da Constituição Federal  e artigo 20 do Código Civil).

Portanto, sob a perspectiva da legislação brasileira, não entendo o caso como violação de direitos autorais propriamente ditos, mas de violação dos direitos da personalidade dos músicos.

Conclusão

Apesar dos desafios que esses novos tempos nos propõem, é inegável que a Inteligência Artificial veio para ficar. As ferramentas disponibilizadas são de grande utilidade e certamente revolucionarão – como, de fato, já estão revolucionando – o mercado de trabalho e a maneira como fazemos nossas tarefas diárias.

No entanto, são legítimas as preocupações que essas novas tecnologias trazem consigo. Essas preocupações devem ser amplamente debatidas, só assim iremos encontrar as melhores soluções, que compreendem a proteção de direitos e, ao mesmo tempo, o estímulo à inovação.

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Advogado (OAB/PR 52.439). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Sócio fundador da Tisi Advocacia, em Curitiba-PR, com atuação em Direito Empresarial, Direito Civil, Propriedade Intelectual e Direito Desportivo....

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  • Neia Azevedo 10/02/2024 às 10:30

    Uma pessoa que gravou um digno de comercial para empresa de gás e só recebeu pela gravação na época o equivalente a R$50,00 de hoje, porem nunca disseram que usaria para fins comerciais e essa voz, não houve cessão nem autorização pé utilizada há mais de 20 anos é considerado violação ao direito patrimonial ? Cabe processo mesmo após 25 anos? O que essa pessoa tem que fazer?

    • André Tisi 27/02/2024 às 14:52

      Olá, Neia. Obrigado pelo comentário e pela pergunta.
      Inicialmente, seria importante verificar exatamente os termos do contrato de cessão firmado na época, caso existente. De qualquer maneira, se consideramos, ainda que hipoteticamente, que houve uma violação e esta ocorreu há 25 anos, infelizmente incidiria a prescrição.
      Contudo, ressalvo que é preciso avaliar a situação com maior detalhe, pois se é caso de violação continuada, por exemplo, podemos ter uma conclusão diferente. Recomendo que você consulte um advogado especialista para analisar o seu caso.

  • Mariana 20/04/2023 às 22:31

    Excelente texto! Tirou minhas dúvidas sobre como funciona os direitos autorais frente a inteligência artificial. Obrigada!

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