A omissão de socorro médico ocorre quando um profissional se recusa injustificadamente a agir diante de risco grave à vida do paciente. É crime previsto em lei e normas éticas, podendo resultar em responsabilização penal, civil e administrativa.
A prestação de socorro em situações de urgência é um dever de todos, mas se torna ainda mais exigente para profissionais de saúde. No ambiente médico, onde decisões e omissões podem ser a diferença entre a vida e a morte, a responsabilidade de agir é imposta por lei com maior rigor.
A omissão de socorro médico acontece quando o profissional, mesmo tendo o dever e a capacidade de intervir, não age em uma situação crítica. Essa conduta, que não é rara, tem ganhado cada vez mais atenção do Poder Judiciário e dos Conselhos de Medicina, o que reforça a necessidade de entender seu enquadramento jurídico.
Neste texto, vamos analisar os fundamentos legais da omissão de socorro médico, mostrando a diferença entre suas formas (própria e imprópria) e suas consequências nas esferas penal, civil e administrativa.
Também vamos abordar as situações que justificam a omissão e dar exemplos práticos de como essa responsabilidade se manifesta no dia a dia.
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O que é omissão de socorro médico?
A omissão de socorro ocorre quando alguém, podendo agir sem risco pessoal, se recusa a prestar ajuda a uma pessoa em situação de perigo. Essa conduta é definida como crime no art. 135 do Código Penal, que é o principal ponto legal sobre essa infração.
Art. 135.– Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
A infração pode acontecer de forma direta, quando o profissional deixa de prestar o auxílio ele mesmo, ou indireta, quando ele não pode intervir, mas também não chama a autoridade competente para fazê-lo.
É importante saber que a simples opção por chamar socorro não exclui a responsabilidade, principalmente se havia a possibilidade de uma atuação direta mais eficaz e isso causou um prejuízo à vítima.
No contexto médico, a omissão de socorro é ainda mais grave. Embora qualquer pessoa possa cometer o crime, os profissionais de saúde, em especial os médicos, ocupam uma posição de garantidor. Isso significa que eles têm um dever legal e qualificado de agir.
Como se configura a omissão de socorro médico?
A omissão se configura quando há uma inércia injustificada diante de uma situação que pede intervenção imediata, sendo o profissional apto a evitar que o quadro piore.
Essas condutas não apenas ferem a lei penal, mas também violam os preceitos éticos do Código de Ética Médica, o que é um desvio grave dos deveres profissionais.
No Direito Penal, a omissão pode ser classificada como própria ou imprópria. A omissão imprópria é também chamada de comissiva por omissão. Essa diferença é fundamental para determinar a responsabilidade do profissional de saúde.
Omissão própria
Acontece quando o profissional, mesmo podendo agir sem risco pessoal, deixa de fazer o que é exigido. Um exemplo é o médico que se recusa a prestar atendimento emergencial sem uma justificativa válida.
É considerada um crime de mera conduta, ou seja, o crime se completa com o simples “não fazer”, mesmo que não haja um resultado prejudicial (como lesão ou morte).
Para que o profissional seja responsabilizado, basta que ele tenha se recusado a agir de forma injustificada.
Omissão imprópria
Se configura quando a falta de ação do profissional causa um resultado prejudicial, como a morte ou o agravamento do estado de saúde do paciente.
Nesses casos, o profissional não responde pelo crime de omissão de socorro (art. 135 do CP), mas sim pelo crime que resultou da omissão, como homicídio ou lesão corporal.
Isso acontece porque, nesses casos, a omissão é tratada como uma ação. Vejamos:
Art. 13, §2º, do CP – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
Para que o profissional seja responsabilizado, é preciso provar que ele ocupava a posição de garantidor, ou seja, que ele tinha a obrigação legal de evitar o resultado.
O que diz a lei sobre a omissão de socorro médico?
A omissão de socorro médico tem sua base em um conjunto de leis e normas que incluem o Código Penal, o Código de Ética Médica, a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor. Juntos, esses instrumentos criam uma base sólida de deveres e sanções para os profissionais e instituições de saúde.
No aspecto ético, o Código de Ética Médica reforça esses deveres. O art. 58 proíbe o médico de deixar de atender pacientes em situação de urgência se não houver outro profissional ou serviço disponível. O art. 35 impõe o dever de assistência em situações de risco iminente.
Outros artigos relevantes são:
- 7º, 8º e 9º, sobre responsabilidade profissional;
- 33, que trata da recusa justificada;
- e o 36, que proíbe o abandono do paciente.
Do ponto de vista constitucional, a saúde é reconhecida como um direito de todos e dever do Estado (art. 196, CF/88). Portanto, a omissão médica é incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).
Para as instituições de saúde, como hospitais e clínicas, o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) estabelece a responsabilidade objetiva. Isso significa que podem ser obrigadas a indenizar por danos causados por falhas na prestação de serviços, sem a necessidade de prova de culpa, bastando a demonstração do dano e da ligação causal.
Quais as consequências da omissão de socorro médico?
A omissão de socorro no contexto médico pode levar a responsabilidade penal, civil e administrativa/ética. A natureza da conduta e o dano causado determinam qual esfera de responsabilidade se aplica. Cada uma dessas áreas tem seus próprios requisitos, objetivos e sanções específicas, vejamos:
Responsabilidade penal
O fundamento penal básico é o art. 135 do Código Penal, que prevê pena de detenção de um a seis meses ou multa.
Trata-se de crime de mera conduta, cuja consumação independe da efetiva produção de resultado lesivo.
Caso a omissão esteja ligada a um resultado prejudicial, como morte ou lesão grave, e o profissional esteja na condição de garantidor (nos termos do art. 13, §2º, CP), a responsabilização penal ocorrerá pelo crime de resultado, como homicídio ou lesão corporal, por omissão imprópria.
Nessa hipótese, o art. 135 deixa de ser aplicado, sendo absorvido pelo mais grave.
Destaca-se ainda o art. 135-A do CP, que tipifica a conduta de condicionar o atendimento médico-hospitalar ao fornecimento de garantias financeiras ou preenchimento prévio de formulários administrativos.
A pena prevista é de detenção de três meses a um ano, além de multa, podendo ser dobrada em caso de lesão corporal grave e triplicada se resultar morte. A norma reflete a preocupação do legislador com o acesso imediato ao atendimento de urgência.
Responsabilidade civil
A responsabilidade civil decorre do dever de indenizar os danos causados à vítima ou a seus familiares, independentemente da existência de processo criminal.Pode abranger:
- danos materiais,como despesas médicas e lucros cessantes;
- danos morais, como sofrimento, angústia, perda de chance;
- e, em certos casos, danos estéticos.
Nos casos de omissão médica, o dano pode ser o agravamento do quadro clínico, a morte antecipada ou sequelas que poderiam ser evitadas, todos configurando prejuízos indenizáveis.
Conforme o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), os hospitais e clínicas respondem de forma objetiva por falhas na prestação do serviço. Isso significa que não é preciso provar a culpa, bastando a demonstração do dano e da ligação causal.
Já para o profissional individual, a responsabilidade é, em regra, subjetiva. Nesse caso, é preciso comprovar a culpa por negligência, imprudência ou imperícia.
Responsabilidade administrativa e ética
O profissional médico também pode ser submetido a um processo disciplinar nos Conselhos Regionais de Medicina (CRM) ou no Conselho Federal de Medicina (CFM).
As sanções, que são as punições, podem incluir advertência confidencial, censura pública, suspensão do exercício profissional e, nos casos mais graves, a cassação do registro profissional.
A omissão de socorro é uma violação direta dos deveres que estão no Código de Ética Médica. Isso se aplica principalmente aos casos de assistência em urgências e emergências e ao respeito total à dignidade do paciente.
É importante mencionar que a conduta omissiva também pode comprometer a ética de outros profissionais, como os advogados, se eles estiverem em um contexto de violação dos deveres de solidariedade e humanidade.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) exige de seus membros que atuem com diligência, probidade e defesa intransigente dos direitos humanos.
Quando a omissão de socorro não é crime?
Embora o dever de prestar socorro seja amplo, existem situações em que a omissão não é considerada uma infração penal, pois há justificativas que excluem a ilegalidade ou tornam a ação inexigível.
O correto entendimento desses casos é essencial para uma análise jurídica precisa.
1. Por risco pessoal
A omissão de socorro não é considerada crime se o profissional corre um perigo grave para si mesmo ao tentar ajudar.
A principal justificativa é a presença de um grave risco pessoal à integridade física ou à vida do socorrista. A lei não exige heroísmo, por isso, o art. 135 do Código Penal condiciona a punição à possibilidade de agir “sem risco pessoal”.
Dessa forma, se o auxílio direto implicar um perigo substancial ao agente, sua omissão não será considerada um crime.
Nesses casos, basta que ele acione rapidamente os órgãos públicos competentes, como polícia, bombeiros ou SAMU. Essa ação configura a prestação de socorro indireta.
2. Se outra pessoa já está ajudando
Quando a vítima já está sendo socorrida de forma adequada por terceiros, o dever de agir do profissional pode ser considerado cumprido.
A lei busca garantir que o socorro seja prestado, e não que todas as pessoas presentes ajam ao mesmo tempo. Portanto, se a assistência já está em andamento, os demais não cometem um crime por omissão.
3. Se a vítima se recusa a ser socorrida
Se a vítima, com plena capacidade de discernimento, recusar expressamente o socorro, a omissão não configura crime.
Ainda assim, é recomendado que o profissional documente a recusa ou busque testemunhas, além de comunicar o fato às autoridades, para comprovar sua boa-fé e diligência.
4. Houve a tentativa de socorro
Além dos exemplos de justificativas, é importante destacar que a omissão de socorro é um crime omissivo puro, o que significa que não se admite a figura da tentativa. Assim, qualquer ato concreto para prestar socorro, mesmo que sem sucesso, descaracteriza o crime.
O elemento subjetivo do crime é o dolo de perigo. Isso significa que o agente tem consciência de que sua falta de ação expõe a vítima a um risco grave e iminente.
Não é exigida a intenção de causar o dano, mas sim a escolha deliberada de não intervir, sabendo da gravidade da situação.
Exemplos de omissão de socorro médico:
Recusa de atendimento emergencial
A recusa de atendimento emergencial acontece quando um médico se nega a ajudar um paciente em uma situação de urgência, mesmo estando disponível e em condições de fazê-lo.
Essa atitude é particularmente grave quando o profissional é o único disponível ou quando o serviço médico tem os meios necessários. A recusa, se não for justificada, pode ser considerada uma omissão penal e uma infração ética.
Inércia médica diante de um quadro grave
A inércia médica é a omissão de agir antes do tratamento, quando o profissional deixa de iniciar as medidas necessárias diante de um quadro clínico grave, permitindo que a saúde do paciente piore.
Esse caso se diferencia da negligência durante o atendimento (como esquecer um material cirúrgico) porque se trata de uma omissão antes da intervenção médica.
Abandono de paciente
O abandono de paciente acontece quando o médico interrompe um tratamento sem justificativa e sem garantir a continuidade do cuidado por outro profissional, podendo ser considerado omissão penal e infração ética grave.
Uma vez que a relação entre médico e paciente é estabelecida, o dever de assistência continua até a alta ou a substituição adequada.
Falta de encaminhamento adequado
Quando o médico, ciente da necessidade de cuidados especializados, deixa de encaminhar o paciente para outro profissional ou serviço adequado, e essa omissão causa um dano que poderia ser evitado, a omissão de socorro pode se configurar.
A falha em promover o desfecho clínico necessário pode ser tão grave quanto uma ação danosa.
Condicionamento de atendimento
A exigência de pagamento antecipado, cheque-caução, nota promissória ou preenchimento de formulários administrativos como condição para atendimento emergencial é expressamente proibida pelo art. 135-A do Código Penal.
Essa conduta é vista como uma forma qualificada de omissão de socorro, com penas mais severas em caso de lesão grave ou morte.
Situação crítica fora do ambiente clínico
O dever de socorro médico não se restringe apenas ao ambiente do hospital. Em situações de emergência, como acidentes de trânsito ou mal súbito em locais públicos, o profissional de saúde tem a obrigação legal e ética de intervir, mesmo sem vínculo formal com a vítima. A omissão nesse contexto pode caracterizar crime, já que o médico tem uma “posição de garantidor”.
Conclusão
A omissão de socorro no contexto médico representa não apenas uma infração penal, mas também uma grave violação dos deveres éticos da profissão.
Diante da posição de garantidor que o profissional de saúde ocupa, sua recusa consciente de agir em situações de urgência ou perigo iminente viola diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana.
Como vimos ao longo do texto, as consequências jurídicas dessa conduta são amplas, alcançando as esferas penal, civil, administrativa e ética. O sistema jurídico brasileiro oferece ferramentas eficazes tanto para punir o profissional omisso quanto para garantir a reparação integral dos danos causados à vítima ou aos seus familiares.
Prestar assistência direta, quando possível, ou acionar imediatamente os serviços de emergência é um dever jurídico e também um imperativo ético. Por isso, em casos de omissão médica, a atuação de um advogado especializado é essencial para garantir a efetivação dos direitos da vítima e a responsabilização dos envolvidos, assim como a justa defesa dos profissionais que eventualmente sejam acusados de forma indevida.
É indispensável, por fim, que o tema seja abordado com uma visão jurídica sensível e tecnicamente precisa, que contemple o Direito Médico e o Direito Penal, para que se fortaleça uma cultura de responsabilidade, cuidado e respeito à vida.
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Conheça as referências deste artigo
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – v. 2: parte especial. (arts. 121 a 154-B): crimes contra a pessoa. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil do Médico. 9 ed. Ver., atual. E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.
VELOSO, Genival. Direito Médico. 13. Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2016.
Luiz Paulo Yparraguirre é Mestre pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Pós Graduado em Advocacia Empresarial (PUC) e em Direito Médico e Hospitalar (UCAM). Membro da World Association for Medical Law (WAML). Sócio do...
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