O adimplemento substancial é um princípio do direito contratual que impede a rescisão de um contrato quando a maior parte da obrigação já foi cumprida, restando apenas uma falha menor. Seu objetivo é evitar prejuízos desproporcionais ao devedor e garantir equilíbrio nas relações contratuais, priorizando soluções como indenizações ou ajustes em vez de rescisão.
Ao longo da vigência de um contrato, diversas situações podem ocorrer, incluindo o inadimplemento. Em regra, quando uma das partes deixa de cumprir sua obrigação, a outra pode solicitar a rescisão do contrato conforme os termos acordados.
Mas já parou para pensar no que acontece quando, por exemplo, alguém já pagou nove das dez parcelas de um contrato? Ou seja, quando o inadimplemento é mínimo em relação ao que já foi cumprido?
Nesses casos, pode-se aplicar o que a doutrina e a jurisprudência chamam de teoria do adimplemento substancial. Esse princípio estabelece que, quando há um cumprimento expressivo do contrato, não seria razoável sua rescisão. No entanto, isso significa que a parte inadimplente fica isenta de suas responsabilidades?
Para entender melhor essa teoria, sua definição, fundamentos, importância e aplicação na prática jurídica, continue lendo este artigo! 😉
O que é o adimplemento substancial?
Para compreender melhor o conceito de adimplemento substancial, é importante analisar seus termos separadamente.
A palavra “adimplemento”, segundo Valdemar P. da Luz em seu dicionário jurídico, significa o “pagamento de uma dívida ou cumprimento de uma obrigação (…)”.
Já o termo “substancial”, conforme o dicionário Michaelis, refere-se a algo “grande em quantidade, extensão ou importância; avultado, considerável, vultuoso”.
Dessa forma, o adimplemento substancial nada mais é do que o cumprimento significativo de uma obrigação em relação ao todo.
Exemplo de adimplemento substancial:
Laura comprou de João um celular no valor de R$4.000,00, parcelado em 10x de R$400,00. Após pagar 9 parcelas, um imprevisto no trabalho a impediu de quitar a última prestação no prazo.
Nesse caso, ainda que Laura não tenha pago a última parcela até o momento, seu cumprimento contratual foi substancial, já que a inadimplência representa uma parte mínima do total devido.
Qual é a teoria do adimplemento substancial do contrato?
Com base nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram o instituto do adimplemento substancial. Esse conceito busca garantir maior segurança e estabilidade às relações contratuais, evitando a resolução do contrato quando a maior parte da obrigação já foi cumprida.
A rescisão contratual, nesses casos, é considerada uma medida desproporcional diante do cumprimento substancial da obrigação. No entanto, a avaliação da substancialidade varia conforme o contexto. Em alguns contratos, a falta de 10% do cumprimento pode ser insignificante, enquanto em outros pode comprometer o equilíbrio entre as partes.
Além disso, a aplicação do instituto não isenta o devedor de suas responsabilidades. Caso contrário, as relações contratuais se tornariam frágeis e inseguras. Segundo Arnaldo Rizzardo, sobre o direito do credor:
[…] fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato.”
Ou seja, o credor pode exigir o cumprimento da obrigação ou solicitar indenização por perdas e danos, mas não necessariamente rescindir o contrato.
Portanto, quando apenas uma pequena parte da obrigação não é cumprida, a resolução do contrato pode ser considerada uma medida exagerada. No entanto, a aplicabilidade da teoria do adimplemento substancial deve ser analisada caso a caso, conforme veremos a seguir.
Como funciona a teoria do adimplemento substancial no direito?
A teoria do adimplemento substancial é um instituto desenvolvido pela doutrina e jurisprudência, sem previsão legal expressa, mas amplamente utilizado na prática jurídica.
Em regra, quando ocorre o inadimplemento de um contrato, a parte prejudicada pode solicitar sua resolução, conforme prevê o artigo 475 do Código Civil.
No entanto, o próprio Código Civil valoriza os princípios da probidade e boa-fé nas relações contratuais (artigo 422), o que levou ao surgimento dessa teoria para proporcionar mais segurança e estabilidade aos contratos que foram substancialmente cumpridos.
Reconhecendo essa importância, a IV Jornada de Direito Civil do CJF aprovou o Enunciado 361, que estabelece:
O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer preponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475.”
Como funciona a aplicação do adimplemento substancial?
Como destaca Venosa, a aplicação da teoria deve ser analisada com cautela para evitar injustiças ou isenção indevida de responsabilidade:
O adimplemento substancial do contrato deve ser aferido cuidadosamente na prova, sem prejuízo da responsabilização por perdas e danos pelo culpado. O que se examina é a proporção de adimplemento no contrato, considerando o volume das obrigações cumpridas e não cumpridas. De acordo com a boa-fé objetiva, busca-se a solução mais justa para o inadimplemento.”
Portanto, a teoria não tem como objetivo enfraquecer as relações contratuais, mas sim evitar resoluções contratuais desproporcionais quando grande parte das obrigações já foi cumprida. Contudo, o credor não pode ser prejudicado, e a essência do contrato deve ser preservada.
A aplicação da teoria não é automática e depende de fatores como:
- Boa-fé das partes;
- Manutenção da essência e do objeto do contrato;
- Mínimo prejuízo às partes.
Por outro lado, a teoria não pode ser aplicada em casos de má-fé por parte do inadimplente, pois isso iria contra os princípios que fundamentam sua existência. A boa-fé é um requisito essencial para limitar o poder contratual do credor.
O que pode ser considerado um valor substancial?
Sempre que houver um cumprimento significativo de um contrato, ou seja, quando há “mais cumprimento do que descumprimento”, a aplicação da teoria do adimplemento substancial pode ser considerada.
No entanto, a avaliação da substancialidade varia conforme o caso. Como mencionado anteriormente, o impacto do inadimplemento depende das especificidades de cada contrato, incluindo seus termos, objeto e essência contratual.
Dessa forma, o que pode ser considerado um inadimplemento irrelevante em um contrato pode ser determinante e comprometer completamente outro tipo de relação contratual.
Exemplos de adimplemento substancial e jurisprudências sobre o tema
Primeiro vamos verificar uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o adimplemento substancial:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE APRECIAÇÃO . CUMPRIMENTO PARCIAL DO ACORDO. PAGAMENTO EXTEMPORÂNEO. INADIMPLEMENTO. RELEVÂNCIA . TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. CLÁUSULA PENAL. REDUÇÃO PROPORCIONAL NECESSÁRIA. OBRIGATORIEDADE . ART. 413 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. DECISÃO MANTIDA. 1 . A análise de suposta violação de dispositivos constitucionais é vedada em sede especial, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. 2. É possível a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial nas relações de direito privado, notadamente se “constatado o cumprimento expressivo do contrato, em função da boa-fé objetiva e da função social, mostra-se coerente a preservação do pacto celebrado” ( AgInt no REsp n. 1 .691.860/PR, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 14/10/2019, DJe de 22/10/2019). 3. A norma do art . 413 do Código Civil impõe ao juiz determinar a redução proporcional da cláusula penal na hipótese de cumprimento parcial da obrigação. Precedentes. 4. Agravo interno a que se nega provimento .
(STJ – AgInt no AREsp: 2279914 RN 2023/0011038-0, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 14/08/2023, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/08/2023)
É possível observar, nesta primeira decisão, os pilares da aplicação da teoria do adimplemento substancial estudados no presente artigo, como o cumprimento expressivo da obrigação, boa-fé e função social do contrato.
Ainda, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça que apresenta os requisitos para a aplicação do adimplemento substancial:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESCISÃO CONTRATUAL. REINTEGRAÇÃO NA POSSE . INDENIZAÇÃO. CUMPRIMENTO PARCIAL DO CONTRATO. INADIMPLEMENTO. RELEVÂNCIA . TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. INAPLICABILIDADE NA ESPÉCIE. RECURSO NÃO PROVIDO. 1 . O uso do instituto da substancial performance não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das obrigações. 2. Ressalvada a hipótese de evidente relevância do descumprimento contratual, o julgamento sobre a aplicação da chamada “Teoria do Adimplemento Substancial” não se prende ao exclusivo exame do critério quantitativo, devendo ser considerados outros elementos que envolvem a contratação, em exame qualitativo que, ademais, não pode descurar dos interesses do credor, sob pena de afetar o equilíbrio contratual e inviabilizar a manutenção do negócio. 3 . A aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial exigiria, para a hipótese, o preenchimento dos seguintes requisitos: a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante há de ser ínfimo em se considerando o total do negócio; c) deve ser possível a conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários (critérios adotados no REsp 76.362/MT, QUARTA TURMA, j. Em 11/12/1995, DJ 01/04/1996, p. 9917) . 4. No caso concreto, é incontroverso que a devedora inadimpliu com parcela relevante da contratação, o que inviabiliza a aplicação da referida doutrina, independentemente da análise dos demais elementos contratuais. 5. Recurso especial não provido .
(STJ – REsp: 1581505 SC 2015/0288713-7, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 18/08/2016, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/09/2016)
No caso acima observa-se alguns requisitos para a aplicação do adimplemento substancial e, ainda verifica-se que na situação específica pelo fato de o inadimplemento ter sido relevante na contratação, o STJ entendeu a impossibilidade de aplicação do instituto.
Agora, transcreve-se abaixo uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que traz um outro caso de descumprimento mínimo em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel:
RESCISÃO DE CONTRATO C.C. REINTEGRAÇÃO DE POSSE – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL – Autora que insiste na rescisão do compromisso de compra e venda do imóvel, com a restituição das partes ao status quo ante – Descabimento – Compromissário comprador que efetuou o pagamento de aproximados 75,94% do preço do imóvel – Imperiosa a aplicação da teoria do adimplemento substancial, que visa a preservação do negócio jurídico, sem prejuízo da cobrança por outros meios – Impossibilidade de rescisão do contrato – Sentença mantida – RECURSO DESPROVIDO.
(TJ-SP – AC: 10018837820198260428 SP 1001883-78 .2019.8.26.0428, Relator.: Angela Lopes, Data de Julgamento: 30/10/2020, 9ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/10/2020)
No caso trazido, houve o cumprimento de 75,94% do contrato de compromisso de compra e venda de imóvel e, no processo, foi determinada a impossibilidade de rescisão do contrato a fim de preservar o negócio jurídico entre as partes, sem prejuízo da cobrança do débito por outros meios.
Mais liberdade no dia a dia
Conclusão:
A teoria do adimplemento substancial se mostra um conceito jurídico relevante e interessante ao longo deste artigo. No entanto, por ser uma construção doutrinária e jurisprudencial, sem previsão legal expressa, sua aplicação deve ser feita com cautela para não comprometer o equilíbrio das relações contratuais.
A avaliação do cumprimento substancial varia conforme o caso, levando em consideração a essência do contrato, os termos acordados e a boa-fé das partes. Além disso, é fundamental verificar se a preservação do contrato é possível sem causar prejuízos ou afetar sua finalidade.
Para advogados, é essencial estudar casos semelhantes na jurisprudência local ao analisar a aplicabilidade da teoria. Dessa forma, é possível estar mais preparado para argumentações jurídicas e previsões sobre decisões judiciais.
Por fim, é importante ressaltar que a teoria do adimplemento substancial não tem o objetivo de prejudicar credores ou beneficiar devedores de má-fé. Seu propósito é manter o equilíbrio contratual, garantindo a proteção dos interesses das partes de boa-fé, sem impedir que o credor busque a cobrança do valor faltante por outros meios legais.
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Conheça as referências deste artigo
DA LUZ, Valdemar P. Dicionário Jurídico. 5. ed. Barueri: Manole, 2022. p. 40.
Dicionário Michaelis.
Rizzardo, Arnaldo. Contratos. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 248-252.
Superior Tribunal de Justiça. Adimplemento substancial: a preponderância da função social do contrato e do princípio da boa-fé objetiva.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Princípio do adimplemento substancial.
Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Contratos. 25. ed. Barueri: Atlas, 2025. p. 40.
Advogada (OAB/PR nº 106.750). Sócia-fundadora do escritório Vieiro & Horning Advogados que atua em todo o país. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA. Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUCPR....
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Excelente artigo! Certamente vou procurar outros artigos de sua autoria! Muito obrigada por compartilhar seu conhecimento.
Olá, Amanda. Fico feliz com o seu comentário! Obrigado.