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O que diz a legislação brasileira sobre o aborto? – art 124 do CP

O que diz a legislação brasileira sobre o aborto? – art 124 do CP

25 set 2023
Artigo atualizado 2 out 2023
25 set 2023
ìcone Relógio Artigo atualizado 2 out 2023
O art 124 do CP Brasileiro pune o ato de provocar aborto em si mesma ou consentir que outra pessoa o faça, com pena de detenção de um a três anos. Existem exceções para gestantes menores de 14 anos, com deficiência mental ou quando o consentimento é obtido por meios ilegais.

Desde os tempos mais remotos, até os dias atuais o aborto é tema dos mais discutidos, seja na seara política, religiosa ou mesmo jurídica. O aborto é a interrupção da gravidez, da qual resulta a morte do produto da concepção.

O dever de proteção não tem por objeto a vida humana em abstrato, senão a existência individual e única de cada ser humano. A pessoa assim protegida existe como indivíduo único e não somente desde o nascimento, mas também antes disso”

Para Giuseppe Maggiore, “é a interrupção violenta e ilegítima da gravidez, mediante a ocisão de um feto imaturo, dentro ou fora do útero materno.”

Mas, como a legislação encara o aborto e como ele é definido? Para entender, continue a leitura e descubra o que diz o art 124 do CP! 😉

Quando inicia a vida segundo o Direito Penal

Assim, em sendo o aborto o fim da gravidez por interrupção, é necessário o conhecimento acerca do início da gravidez, que se dá com a fecundação. A partir desse momento já existe uma nova vida em desenvolvimento, merecedora da tutela do Direito Penal.

Com efeito, haverá aborto qualquer que seja o momento da evolução fetal. No Brasil, a proteção penal ocorre desde a fase em que as células germinais se fundem, com a constituição do ovo ou zigoto. 

Destaque-se que a proteção penal se modifica no momento em que se inicia o processo de parto, pois a partir de então o crime será de homicídio ou infanticídio.

Alguns estudiosos relatam que a proteção penal deve ocorrer após a ocorrência da nidação, que nada mais é que a fixação do óvulo fecundado na parede do endométrio, tecido que reveste a parte interna do útero.

Esse, inclusive, é o entendimento utilizado pela legislação germânica e espanhola. Conforme acentua o artigo § 218, I, 2, StGB (Código Penal Alemão): 

O impedimento intencional da nidação, por meio de pílulas ou espirais, é impune segundo o Direito alemão, de modo que, antes da implantação no útero, o embrião carece de qualquer tutela.”

Além disso, argumentam que algumas pílulas anticoncepcionais, e também do DIU (dispositivo intrauterino) admitidos no Brasil, agem depois da fecundação, com a finalidade de impedir o alojamento do ovo no útero. 

Destaque-se que o Conselho Federal de Medicina aprovou, em 2007, resolução regulamentando a utilização do método contraceptivo de emergência conhecido como “pílula do dia seguinte”, reconhecendo não possuir este caráter abortivo, justamente porque atua de modo a impedir a união dos gametas e, portanto, a formação do óvulo, e não sua implantação no útero, ou seja, a nidação.

Por consequência, se a gravidez tem início com a fecundação, as mulheres que se valiam desses métodos anticoncepcionais cometeriam o crime de aborto. Ocorre que, a medicina é pacífica ao indicar a fecundação como o termo inicial da gravidez. 

Assim, como o Brasil permite o uso de tais meios de controle da natalidade, as mulheres que deles se utilizam não praticam crime nenhum, pois atuam sob o manto do exercício regular de direito, causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 23, inciso III, in fine, do Código Penal.

Quais são os artigos do CP que tratam do aborto?

O Código Penal traz a partir do art 124, quatro artigos que tratam do aborto. 

Diante desses artigos, a melhor doutrina traduz o aborto das seguintes espécies: 

  • natural: é a interrupção espontânea da gravidez. Exemplo: O organismo da mulher, por questões patológicas, elimina o feto. Aqui não há crime;
  • acidental: é a interrupção da gravidez provocada por traumatismos, tais como choques e quedas. Não caracteriza crime, por ausência de dolo.
  • criminoso: é a interrupção dolosa da gravidez. Encontra previsão nos art 124 a 127 do Código Penal;
  • legal ou permitido: é a interrupção da gravidez de forma voluntária e aceita por lei. O art. 128 do Código Penal admite o aborto em duas hipóteses: quando não há outro meio para salvar a vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico) e quando a gravidez resulta de estupro (aborto sentimental ou humanitário). Não há crime por expressa previsão legal;
  • Eugênico ou eugenésico: é a interrupção da gravidez para evitar o nascimento da criança com graves deformidades genéticas. Discute-se se configura ou não crime de aborto. A questão será analisada quando estudarmos o art. 128 do Código Penal;
  • Econômico ou social: mata-se o feto para não agravar a situação de miserabilidade enfrentada pela mãe ou por sua família. Trata-se de modalidade criminosa, pois não foi acolhida pelo direito penal brasileiro.

Tipificação e objetitividade do crime de aborto

O objetivo da norma penal é a proteção da vida humana intrauterina. Em três modalidades do aborto, a saber: 

  1. provocado pela gestante ou denominado autoaborto; 
  2. consentimento para o aborto, ambos tipificados pelo art. 124 do Código Penal; 
  3. aborto com o consentimento da gestante, ou aborto consentido, definido pelo art. 126 do Código Penal, somente existe um único bem tutelado: o direito à vida, do qual o feto é titular.

Assim, se tutela apenas a vida intrauterina. Por sua vez, no aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante, tipificado no artigo 125, do Código Penal, protege-se também, além da vida do feto, a integridade física e psíquica da gestante.

Importante destacar que no crime de aborto é eliminada uma vida humana intrauterina, sendo que o legislador, em qualquer de suas modalidades, por questões de política criminal, decidiu atribuir uma sanção penal sensivelmente menor àquela cominada ao homicídio.

Mas este delito, por mais odioso e reprovável que seja, nunca pode equiparar-se em gravidade ao homicídio, pois a vida que nele se extingue não pode ser considerada como definitivamente adquirida; é mais uma esperança do que uma certeza; e entre o estado de feto e o de homem há um grande intervalo e se interpõem tantos obstáculos e perigos, que sempre se pode ficar em dúvida se, ainda sem a expulsão violenta, essa vida esperada poderia realmente chegar a converter-se em uma realidade”.

De outro modo, o que o agente objetiva no crime de aborto é o feto, sendo esse o objeto material desse crime. Destaque-se, que o Código Penal não estabelece qualquer distinção entre óvulo fecundado, embrião ou feto. Todos são merecedores da tutela penal.

Provocar aborto em si mesma – art 124 do CP

Nessa modalidade de aborto, denominada de autoaborto, a gestante efetua contra si própria o procedimento abortivo por qualquer modo capaz de levar à morte do feto. São exemplos de meios de execução golpes com instrumento contundente, quedas propositais, ingestão de medicamentos abortivos dentre inúmeros outros métodos.

Importante ponto é a possibilidade de participação nessa modalidade, sendo, portanto, compatível com o concurso de pessoas. Imagine um namorado que fornece medicamento abortivo à mulher grávida, visando a morte do feto. 

Nessa hipótese, haverá concurso de pessoas, respondendo a mulher grávida pelo autoaborto, como autora. Por sua vez, o namorado responderá pelo mesmo crime, todavia, como participe, já que temos um crime de mão própria e compatível com a conduta de induzir, instigar ou auxiliar, de forma secundária, a gestante a provocar aborto em si mesma.

Note, que nesse exemplo, o namorado não pratica atos ou manobras abortivas, limitando-se a fornecer a medicação. Caso execute manobras abortivas, recairá a imputação do artigo 126, do Código Penal, que será vista.

Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já se manifestou sobre esse tema, conforme se observa dessa decisão.

Incide nas sanções do art. 126 do CP e não nas do art. 124, aquele que, além de ter empregado, pessoalmente, meios abortivos na gestante, consistentes em injeções e comprimidos, com seu consentimento, a conduz à parteira, remunerando esta para que provocasse o aborto.” 

Dica para profissionais de advocacia

Para que seja constatada a materialidade do crime, deve haver prova da gravidez, decorrente de normal desenvolvimento fisiológico, pois o aborto depende da morte do feto, necessitando, assim, de prova material da gravidez.

Por outro lado, se a mulher não estava grávida, ou se o feto já havia morrido por outro motivo qualquer, estará configurado crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, nos termos do artigo 17, do Código Penal.

Além disso, o feto deve estar alojado no útero materno. Logo, não haverá aborto, por exemplo, na destruição de um tubo de ensaio que contém um óvulo fertilizado in vitro.

Aborto com o consentimento da gestante – art 124 do CP

Cuida-se do consentimento para o aborto. A grávida não pratica em si mesma o aborto, mas autoriza um terceiro qualquer, que não precisa ser médico, a fazê-lo.

Nessa situação, o Código Penal abre uma exceção à teoria monista ou unitária adotada pelo artigo 29, caput, no tocante ao concurso de pessoas: a gestante é autora do crime tipificado pelo artigo 124, 2.ª parte, enquanto o terceiro que provoca o aborto é autor do crime definido pelo artigo 126, ambos do código penal.

Mais uma vez, tem-se um crime de mão própria, pois somente a gestante pode consentir com a realização do aborto por terceira pessoa. Exemplo desse crime, é a gestante que busca famosa “parteira”, vindo a consentir que essa realize o aborto.

Importante destacar que ambas as figuras aqui vistas são punidas com detenção, que vai de 01 a 03 anos, sendo, portanto, compatíveis com a suspensão condicional do processo, do artigo 89, da Lei 9.099/95.

Aborto sofrido – praticado por terceiro sem o consentimento da gestante – art 125, do Código Penal

Nesse crime, o Código Penal trabalha com a expressão “aborto provocado por terceiro”, mais grave, uma vez que ausente o consentimento da gestante. Diante disso, tem-se que esse crime ocorre em duas hipóteses específicas: 

  1. não houve realmente o consentimento da gestante. São exemplos: agressão pelo antigo namorado que a engravidou, terceiro que coloca medicamento abortivo em sua comida, gestante é empurrada na escada, dentre inúmeras outras situações;
  2. a vítima prestou consentimento, mas sua anuência não surte efeitos válidos, por se enquadrar em alguma das situações indicadas pelo artigo. 126, parágrafo único, do Código Penal: gestante não maior de 14 anos ou alienada ou débil mental (dissenso presumido) ou consentimento obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência (dissenso real).

Essa hipótese será vista quando da análise do artigo 126, do Código Penal. Importante destacar a existência de duas vítimas nesse crime em específico, sendo a mãe e o feto.

Estando a gestante grávida de gêmeos ou mais, e sendo o terceiro conhecedor dessa situação, responderá ´por dois ou mais abortos, em concurso formal imperfeito, na forma do artigo 70, do Código Penal. Por sua vez, se não tinha conhecimento do número de fetos, responderá por um único crime, afastando-se a responsabilidade penal objetiva.

Aborto praticado por terceiro com o consentimento – válido – da gestante. art1 26, do Código Penal.

A conduta típica é semelhante àquela contida nos artigos 124 e 125, do Código Penal, isto é, provocar aborto. Exige-se, todavia, que ocorra o consentimento válido da gestante.

Notadamente esse crime é aplicado somente ao terceiro que vem a praticar o aborto, com o consentimento, da gestante. Tal situação ocorre, por força da exceção à teoria monista, conforme já explicado, respondendo a gestante, pelo artigo 124, do Código Penal e aquele que de fato pratica o ato, pelo artigo 126, do Código Penal.

Decidiu-se tratar a mulher de forma mais branda em decorrência dos abalos físicos e mentais que ela enfrenta com o aborto, nada obstante criminoso.

Extensão do consentimento da gestante

O consentimento da gestante deve se manter até a consumação do aborto. Se durante o procedimento abortivo ela se arrepender e solicitar ao terceiro a interrupção das manobras letais, mas não for obedecida, para ela o fato será atípico, e o terceiro responderá pelo crime delineado pelo artigo 125, do Código Penal.

Ademais, o consentimento pode ser prestado verbalmente ou por escrito, ou resultar da própria conduta da gestante, tal como quando ela coopera com o terceiro nas manobras abortivas mediante movimentos corpóreos. 

Ausência de consentimento presumido – art 126, parágrafo único, do Código Penal

O artigo 126, parágrafo único, do Código Penal, estabelece que não é válido o consentimento prestado por gestante não maior de 14 anos. 

Assim, a contrario sensu, é possível concluir que o consentimento prestado por gestante maior de 14 anos e menor de 18 é válido, embora só possa ela ser punida perante a Vara da Infância e da Juventude, praticando, assim, ato infracional análogo a crime. 

Nesse sentido, se a gestante de 15 anos é levada pelo namorado, a uma clínica de aborto e ali é realizado o ato abortivo, ela responde pelo ato infracional de consentimento para o aborto na vara especializada. 

O namorado, por ser partícipe no crime de consentimento para o aborto, respondendo perante a Justiça Comum, se maior de idade, e o médico, ao final, incorre no crime de provocação de aborto com o consentimento da gestante, conforme o artigo 126, do Código Penal.

Em outro cenário, se a gestante for menor de 14 anos e, caso se dirija sozinha ao médico e autorize o ato abortivo, tal consentimento, não é válido, devendo o médico incorrer no crime de aborto sem o consentimento da gestante, nos termos do artigo 125, do Código Penal.

Outro ponto importante que se chama a atenção é que a gravidez de mulher menor de 14 anos leva à conclusão de que foi ela vítima de estupro de vulnerável, conforme o artigo 217-A, do Código Penal.

Nessa hipótese, prevê a lei que é permitida a realização do aborto, mas apenas se houver autorização dos representantes legais da grávida, conforme o artigo 128, II, do Código Penal.

O mesmo artigo 126, parágrafo único, do Código Penal, não reconhece valor ao consentimento prestado exclusivamente por gestante alienada, ou débil mental, respondendo igualmente por aborto sem o consentimento da gestante quem realize o ato abortivo baseado em referida autorização nula.

Da mesma forma se obtido por meio fraudulento, com grave ameaça ou violência. Exemplo disso é o médico e o pai da criança em gestação, que, mancomunados, falsificam exame e convencem a moça de que o prosseguimento da gravidez provocará a morte dela e, com isso, obtêm sua assinatura concordando com a realização do aborto. 

Descoberta a farsa, o médico e o pai respondem por aborto sem o consentimento. Para a gestante enganada, o fato não é considerado crime.

Aborto qualificado – art 127, do Código Penal.

Apesar de o legislador ter utilizado a expressão “formas qualificadas”, o artigo 127, do Código Penal contém, em verdade, duas “causas de aumento de pena”. 

Não foram modificados os limites das penas em abstrato, o que evidenciaria qualificadoras. Ao contrário, limitou-se o Código Penal a prever percentuais que majoram a pena, na terceira fase de sua dosimetria, caracterizando causas de aumento.

Importante deixar claro que tais formas apenas são aplicadas aos crimes capitulados nos artigos 125 e 126, do Código Penal. Portanto, as causas de aumento têm incidência apenas ao terceiro, mas nunca à gestante.

O artigo 127, do Código Penal previu duas hipóteses de crimes qualificados pelo resultado, de natureza preterdolosa. Pune-se o primeiro crime, que é o de aborto, na modalidade dolosa, e o resultado agravador, que pode ser morte ou lesão corporal de natureza grave, a título de culpa. 

O agente quer matar o feto, mas por culpa acaba produzindo lesão corporal de natureza grave ou mesmo a morte da gestante. 

Aplica-se, aqui, o quanto insculpido no artigo 19, do Código Penal: 

Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente”.

Se, no entanto, o terceiro tinha dolo (direto ou eventual) no tocante a ambos os crimes, responde por aborto e por lesão corporal de natureza grave ou homicídio, em concurso (material ou formal imperfeito, dependendo do caso concreto).

Por outro lado, aquele que mata dolosamente uma mulher, ciente da sua gravidez, e assim provoca a morte do feto, responde por homicídio doloso e também por aborto, ainda que reste provada a ausência de intenção de provocar a morte do feto. De fato, quando se mata uma mulher grávida há pelo menos dolo eventual quanto ao aborto.

Mas, se o terceiro mata dolosamente uma mulher, ignorando sua gravidez, daí resultando também o aborto, a ele será imputado apenas o homicídio doloso. Exclui-se o aborto, sob risco de caracterização da responsabilidade penal objetiva.

Aborto legal ou permitido: art 128, do Código Penal.

Nesse ponto, é importante esclarecer que o legislador trouxe duas formas de causas especiais de exclusão de ilicitude. Assim, mesmo que haja o aborto, haverá fato típico, todavia, não há crime, já que tratam-se de hipóteses permitidas pela legislação penal.

A primeira hipótese é o denominado aborto necessário. Neste existe um conflito de bens jurídicos valiosos, sendo a vida da gestante e a vida do feto. Por questões de política criminal, houve a opção pela vida humana madura. Essa encontra-se inserida no artigo 128, I, do Código Penal.

Diante disso, em havendo a colocação da vida da gestante em risco, em função da gestação em si, está autorizado a realização do aborto necessário, visando salvar a sua vida.

Dessa forma, exige-se dois requisitos, sendo o primeiro: que a vida da gestante corre perigo em razão da gravidez; Segundo: não exista outro meio de salvar sua vida. O risco para a vida da gestante não precisa ser atual. Basta que exista, isto é, que no futuro possa colocar em perigo a vida da mulher, e seja atestado por profissional da medicina.

Questão intrigante é acerca da necessidade de autorização ou consentimento da gestante. Exatamente por ser um bem indisponível, não há a necessidade de haver o consentimento ou autorização da gestante para a realização do aborto necessário ou terapêutico, sendo, inclusive, desnecessária autorização judicial para tanto. Recai, portanto, sobre o médico, a decisão da interrupção da gravidez.

Outra hipótese é a denominada gravidez fruto de estupro. Nessa hipótese entra em cena o o princípio da dignidade da pessoa humana, encravado no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1.988.

Entendeu o legislador que seria atentatório à mulher exigir a aceitação em manter uma gravidez e criar um filho decorrente de uma situação trágica e covarde que somente lhe traria traumas e péssimas recordações.

Nesse sentido, não se pode justificar uma vida indigna, por parte da mulher manter uma gravidez resultante de crime contra ela perpetrado.

Há, no fundo, colisão entre duas vidas, e é razoável a preferência pela vida da mulher. Vida sem dignidade equivale, para a Constituição Federal, a inexistência de vida humana.

Nessa hipótese, a legislação demanda três requisitos: devendo ser realizado por médico; deve haver consentimento válido da gestante ou representante legal, se incapaz; ser a gravidez resultante de estupro.

Ponto importante é acerca do aborto resultante de estupro de vulnerável. Nesse caso, existe analogia in bonan partem, autorizando, assim, o aborto. Notadamente, apenas o médico encontra-se habilitado para a realização dos abortos permitidos na legislação penal.

Aborto eugênico ou eugenésico

O aborto eugênico ou eugenésico é aquele em que o nascituro apresenta fundadas probabilidades de apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais.

O direito brasileiro não possui regra possibilitando o aborto nas hipóteses em que os exames médicos pré-natais indicam que a criança nascerá com graves deformidades físicas ou psíquicas.

O fundamento para tanto é a tutela da vida humana no mais amplo sentido. O Direito Penal protege a vida humana desde a sua primeira manifestação. Basta a vida, pouco importando as anomalias que possa apresentar.

Nesse sentido o professor é penalista Nelson Hungria traduz:

É suficiente a vida. Não importa o grau da capacidade de viver. Igualmente não importam, para a existência do crime, o sexo, a raça, a nacionalidade, a casta, a condição ou valor social da vítima. Varão ou mulher, ariano ou judeu, parisiense ou zulu, brâmane ou pária, santo ou bandido, homem de gênio ou idiota, todos representam vidas humanas. O próprio monstro (abandonada a antiga distinção entre ostentum e monstrum) tem sua existência protegida pela lei penal”.

Aborto econômico, miserável ou social

Outro ponto de importância é o aborto econômico, miserável ou social que é a interrupção da gravidez fundada em razões econômicas ou sociais, quando a gestante ou sua família não possuem condições financeiras para cuidar da criança. 

Há crime, pela ausência de normas que autorizam o aborto nessas situações.

Aborto de feto anencefálico e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Entende-se por anencefalia a malformação do tubo neural, caracterizada pela ausência do encéfalo e da calota craniana. Ela ocorre entre o 16.º e o 26.º dia de gestação.

A Medicina a considera uma patologia letal, isto é, que leva invariavelmente à morte do recém-nascido, dada a absoluta impossibilidade de vida independente sem o encéfalo e a calota craniana. Nesses casos, inexiste atividade cerebral.

Por tais razões, a questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF54/DF, ajuizada pela CNTS – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. Nessa oportunidade, declarou o STF a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos. I e II, do Código Penal. 

Assim, a Corte reconheceu o direito da gestante de se submeter à antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem ser obrigada a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado.

Tal entendimento surge pela laicidade do Brasil, pela dignidade da pessoa humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o pleno reconhecimento dos direitos individuais, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Nesses casos não há vida em potencial, e sim a certeza da morte (incompatibilidade com a vida extrauterina), razão pela qual não se pode falar em aborto.

Percebe-se que a obrigatoriedade de preservar a gestação produz danos à gestante, muitas vezes levando-as a uma situação psíquica devastadora, pois na maioria dos casos predominam quadros mórbidos de dor, angústia, luto, impotência e desespero, em face da certeza do óbito

Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 54/DF, em 10 de maio de 2012, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução CFM 1.989/2012, disciplinando a atuação prática dos médicos no tocante à interrupção da gravidez baseada na anencefalia do feto, independentemente de autorização do Estado.

Assim, atualmente, não constitui crime de aborto a interrupção da gravidez de feto anencéfalo.

Aborto em caso de microcefalia 

Microcefalia é a condição neurológica rara na qual a cabeça do feto ou da criança apresenta dimensões significativamente inferiores às de outros fetos ou crianças de igual estágio de desenvolvimento ou do mesmo sexo e da mesma idade. Em síntese, o cérebro não cresce de forma adequada durante a gestação ou após o nascimento.

Além do reduzido tamanho da cabeça, a microcefalia demonstra outros sintomas, como crises convulsivas, atraso mental, paralisia, epilepsia e hipertonia muscular generalizada.

Essa anomalia possui diversas causas, sendo as mais comuns as infecções como rubéola, citomegalovírus e toxoplasmose, o consumo de cigarro, álcool ou drogas durante a gravidez, doenças metabólicas na gestante, desnutrição e, mais recentemente, a contaminação pelo zika vírus durante a gestação, notadamente em seu primeiro trimestre.

Diante de tais considerações, surgiu a discussão acerca da possibilidade de interrupção da gravidez para fetos diagnosticados com microcefalia.

Houve, inclusive, a propositura da ADI 5581/DF, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), que discute, além de questões relacionadas ao direito previdenciário – BPC/LOAS, a questão relativa ao aborto.

Nesse sentido, requereu-se, naquela oportunidade, a restrição da interpretação e consequente não aplicação dos artigos 124, 126 e 128, do Código Penal, para as mulheres comprovadamente infectadas com o zika vírus e realizarem aborto ou a declaração de constitucionalidade do artigo 128, I e II, do Código Penal, incluindo, tal hipótese como mais uma excludente de ilicitude específica ou mesmo genérica, como estado de necessidade.

Tal ADI, atacava o artigo 18, da Lei 13.301/2016. Ocorre que a Medida Provisória nº 894, de 2019 e a consequente Lei nº 13.985, de 2020, acabaram por revogar o referido artigo 18, tendo a ADI perdido seu objeto e, consequentemente, extinta.

Com efeito, a questão relativa a microcefalia segue sem qualquer definição pelos Tribunais Superiores, todavia, é preciso ter em mente que se trata de questão diversa da anencefalia, uma vez que nessas hipóteses há sim vida extrauterina.

A vida da criança com microcefalia a toda evidência não é fácil. No entanto, as dificuldades podem surgir para qualquer pessoa, portadora ou não dessa doença ou de qualquer outra enfermidade física ou mental. 

Por outro lado, uma doença não pode aniquilar o seu direito de vida. No plano normativo, vale a pena destacar a existência de legislação específica a Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, que consagra direitos àqueles com deficiência.

De fato, a pessoa com deficiência é um ser humano comum. O Estado deve protegê-la e fomentar seu normal desenvolvimento, e não privar do direito de viver.

Conclusão

O presente artigo teve por objetivo analisar, sem, contudo, esgotar, as questões relativas ao crime de aborto. Analisou-se o conceito de vida intrauterina e a relação da tutela penal e sua importância.

Além disso, analisou-se os objetivos da norma penal, bem como a sua tutela penal específica, em especial por se tratar de crime doloso contra a vida, afeto ao rito do Tribunal do Júri.

Houve, ainda, a análise de todos os artigos relacionados ao aborto e das formas de prática do crime, modalidades e espécies. Além disso, analisou-se as hipóteses onde não há crime, ou seja, quando há permissão para a realização do aborto.

Por fim, esse artigo analisou as questões relativas à anencefalia e microcefalia e suas consequências jurídicas atuais. 

Não se pode perder de vista que o aborto é questão das mais importante e discutidas no cenário atual do brasileiro, em especial por cuidar e tratar da vida humana intrauterina, dada sua imensa importância para toda a sociedade.

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Advogado Criminalista com ênfase no Tribunal do Júri e Professor do Instituto de Ensino Superior e Formação Avançada de Vitória (IESFAVI); Pós graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera - Uniderp, graduado em Direito pela Universidade Jorge Amado....

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